este é um dos poucos lugares expressivos do meu mundo em que eu venho sem ter nada para dizer.
a que acorro só pelo privilégio dessa ilusão quase juvenil de poder estar um pouco comigo.
e com as coisas que perdi: a solidão. o recolhimento. o espaço de dentro, o de fora.
o confronto comigo mesmo, as ideias de aperfeiçoamento
e de história.
a história como um movimento de um tempo para o outro.
não me ocorre nenhum tipo de nostalgia pelo tempo que passou. nem anseio pelo que virá. não consigo no entanto dissociar-me daquela sensação de bem estar que me dá o trabalho de lembrar. de tecer circunstâncias. características.
o facto de aqui vir tão poucas vezes, diz tudo sobre mim, sobre a minha vida, sobre o meu momento,
sobre a auto-satisfação com que me entrego às coisas.
este é, verdadeiramente, um lugar. um sitio de paredes negras. como se fosse uma caixa preta. um teatro.
apercebo-me: tenho, cada vez mais, uma estranha forma de falar. venho aqui, em silêncio, e em silêncio me vou, passado uma hora, às vezes duas, com a folha ainda em negro, um negro tão expressivo, como se tivesse ficado vazio de tanto dizer.
não vou totalmente satisfeito com o que expressei. Mas também a verdade é que a
expressão nunca me deu felicidade.
talvez alívio.
felicidade não. eu dizia e falava e na minha louquacidade sabia que tinha de voltar no dia seguinte, e no dia depois do dia seguinte,
e mais uma vez,
até que este mal estar se dissipasse.
e de cada vez que escrevia, que dizia, e poderia falar do que quer que fosse,
o mal estar crescia mais, mais, cada vez mais,
e tudo isto como se fosse um circulo vicioso interminável.
não me lembro de quando comecei a falar para dentro.
a sorrir diante das palavras que se dissipavam no ar como se fossem
aquelas argolas de fumo que eu fazia quando aprendi a fumar.
era como se eu olhasse a linha de horizonte e visse uma dança de letras,
de palavras,
que decerto tinham fugido de mim.
e eu cada vez mais contente comigo.
eu dantes pensava que só os imbecis eram contentes consigo mesmos.
hoje já não sei.
escrever o que não escrevo faz-me feliz.
um pouco menos solidário, eu sei.
poderia dizer que há na minha não-escrita uma solidariedade
com aqueles que sofrem com a poluição das palavras
em catadupla,
mas não seria verdadeiro nem com as palavras que não digo,
nem justo com a ferida que o não-dizer faz em mim. E
isso obrigar-me-ía a fugir do silêncio e a refugiar-me na explicação
da minha original não imbecilidade.
a verdade é que me tornei um imbecil.
deixei de me angustiar com a possibilidade de haver qualquer coisa que
eu não compreendo no meio disto tudo. é uma ironia da vida: hoje o que
verdadeiramente me apoquenta,
ao ponto de uma noite tranquila poder de repente transformar-se numa
violenta tempestade,
é a heuristíca,
a descoberta inadvertida.
As minhas noites mais tranquilas são aquelas onde
adormeço com o enigma do universo.
Reservado O Direito de Admissão
23 de fevereiro de 2010
Reservar o direito do lugar
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Etiquetas: auto-retratos
1 de agosto de 2009
Exercícios de estilo
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7 de janeiro de 2009
É tarde, muito tarde na minha noite
Levanto-me para a minha noite,
o meu estado de vígilia.
A minha inquietude.
Na escuridão da sala a luminosidade
da pantalha do computador
parece aqueles néons das
noites duvidosas da nossa adolescência tardia,
ali ao cais do sodré,
entre marinheiros, putas e
la noveau vague,
os anos oitenta,
o jamaica,
o tokio,
o shangri-la.
A minha inquietude agora é outra e
tão diferente
que se antes soubesse a que agora me chegaria
teria recusado as
históricas manhãs em que o bafo etílico se dissipava
naquele choque,
que mundo é este lá fora?,
e porque é que esse mundo lá fora entrou todo dentro da minha cabeça de marfim?,
essa overdose de sons,
gigantes moleculares de matéria dissonante,
as manhãs,
o passar entre as vendedoras de rosmaninho, de salsa e hortelã no mercado da ribeira.
A minha inquietude agora é a minha morte cívica.
Eu sei,
eu encho o peito de heroicidade,
mera necessidade de sobrevivência,
daqui a nada quando for lavar os dentes
antes de dormir,
preciso de reconhecer no tipo que está à frente um elo
comigo mesmo,
mas depois, quando me vou deitar,
no espaço exíguo entre o corredor da sala e
a cama,
o leito,
perco a basófia,
e é por isso que me levanto para esta noite de vígila,
onde o que me sustém na escuridão é esta ideia de
que morri civicamente.
Não vale a pena tentar fazer literatura com isso.
Morri e são também mortos os que me leêm.
Escrevo para mortos, eu
que não vivo
mais do que o sussurro deste desabafo.
Talvez, que digo?, é bem provável, que a minha morte cívica,
seja a literatura rasca em que me envolvo,
devemos continuar ainda a fazer de mortos por mais algum tempo,
outros virão,
os nossos filhos,
e tal como nós fizémos,
ou pensámos que o fizémos,
com a não vida dos nossos pais,
farão de vivos,
entregar-se-ão à ilusão da vida
com a mesma autenticidade,
com a mesma generosidade,
com que nós nos entregámos,
saberão resolver de outra forma,
com juventude,
que é sempre uma forma da poesia resolver o mundo,
a dor,
o encarceramento,
a falta de provisão de humanidade no mundo em que viverão.
Eu hoje não consigo desligar-me dos rostos daquelas crianças e mulheres
que morreram na faixa de Gaza,
eu sei,
os militantes do Hamas ocultam-se entre a população civil,
o medo torna os mais valentes acossados,
os israelitas também têm de viver ali,
eu sei tudo isso,
só não sei,
e tenho tantas saudades da minha televisão a preto e branco
onde vi na minha infância a morte dos vietcongs,
é horrivel a cores aquele sangue vermelho,
tão parecido com o meu quando me corto,
quando me aleijo,
quando me dói.
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30 de dezembro de 2008
Amei aquele novo dia
Demoro muito tempo a morrer.
A minha inércia devagar.
As mãos.
As minhas mãos devagar demoram muito tempo
nesta inércia.
Morre-se devagar. Primeiro as mãos.
As mãos para a frente.
As mãos para a frente, o grito atrás, diante.
A minha indiferença é a minha morte e
não é outra coisa
senão o modo como vivo.
Mais um ataque em Gaza.
No Afeganistão.
Naquele jovem americano que se suicidou com um tiro de pistola russa
que herdara de seu pai
e que só ontem foi chorado em Portugal,
numa pequena sala de Lisboa,
na parte velha.
Eu estava lá, entre o grito, o choro. Não estava em Gaza.
Nem no Afeganistão.
Nem em lado nenhum.
Demoro muito tempo a aperceber-me que não é bem vida,
esta morte.
Ponho as mãos para diante.
Como se fosse um jogo de trava-trava.
As minhas mãos enxutas levantadas ao céu.
Amei aquele nascer do dia.
Lembro-me da boca aberta.
Não era espanto. Não era admiração.
Era fome.
O primeiro broche da minha vida morta,
da minha morte viva.
Amei aquele nascer do dia, aquele novo dia.
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26 de setembro de 2008
a noite entra por aqui a dentro
a noite entra por aqui a dentro,
o som dos violinos,
a voz tenora
sei da música o lugar
onde a linguagem se esquece de figurar.
as imagens rebentam com as outras imagens.
não é aqui que compreenderei o meu tempo,
aqui apenas o lugar onde o reinventarei.
renata tabaldi,
é o som que ela coloca na caixa de cds,
os meus ouvidos brutos, rudes e
ásperos,
dançam com estes minuetes vocais.
ela ainda não desistiu,
diz-me,
nunca desistirei, de cultivar os meus tímpanos
desacreditados da apoteose musical em que um mundo,
um qualquer.
se pode tornar.
dois mil e oito. um número apenas. estou numa terra estranha,
não estamos todos?,
volta e meia a política bate-me à porta,
não com a mesma subtileza de renata tabaldi,
gostava de participar,
de não ficar de fora,
já não pela razão antiga que
quando era criança me tornava triste
quando me sentia preterido,
aprendi a construir o meu mundo nos arrabaldes dos mundos
que me excluiam,
por uma razão muito menos inconformista,
mais egoísta.
é que não suporto mais a chata da minha razão,
os seus sermões,
lições e raspanetes, tratando-me sempre
como se eu fosse um menino de coro.
ouço as vozes uma a uma e de todas
elejo a noite de renata tabaldi
que cava fossos imensos com os
decassílabos que se escondem no silêncio.
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11 de julho de 2008
a grande raiva do mundo
eu pensava que o poema era a fúria e que a fúria era a raiva, a força, até o grito. até ao grito.
imaginava-me assim. ía buscar um cigarro,
algo para beber,
nada de especial,
e depois desatava-me. arrebentava por dentro, por fora, arrebentava
com tudo.
ou pensava que arrebentava.
escrevia com fúria, com raiva,
escrevia de um lance, de um rasgo e
pensava que arrebentava.
nem sou capaz de imaginar o que as ideias faziam na geringonça que é o meu cérebro
para me levarem a supôr que arrebentava.
estou tão longe do mar.
milhares de passos depois. de pássaros. fogem na noite as aves e deixam-me assim
num solilóquio.
orfão de mar, de vida, de febre,
de luz esconsa.
abre-se-me uma claridade como se um chão que de repente se abrisse.
aves, pássaros, praia, areias sem fim.
eu não quero morrer sem ser de manhã outra vez e outra vez e outra vez, e sempre, sempre
sempre manhã de novo.
faltam-me as palavras, os verbos, as ideias.
apetece-me chorar.
apetece-me chorar longamente. lavar-me em água, lavar-me de mim.
as minhas crianças e as minhas mulheres choram.
eu não consigo.
sequei.
secante o caminho diante, em frente. não há mais nada a dizer,
perdi a capacidade de entender o que me cerca e isso é antes de mais,
a inutilização de um ser. não me servem de nada as ideias,
penso em retornar à grande magia do mundo, o amor,
o amor e essas merdas,
o choro,
o choro transido das mulheres, dos infantes,
da água-seca.
Eu bem me esforço mas não sou capaz de dobrar o poema ao meio,
como se fosse este guarnanapo onde limpo os
lábios.
estou tão longe do mar e daquilo a que um dia,
num acesso de loucura juvenil,
chamei praia.
apetecia-me rebentar. mas não arrebento, nunca arrebentei,
sou contido,
contenho-me.
o mundo desconheço-o. faço algumas habilidades mas não mais do que isso,
truques.
estou tão longe do mar, daquilo a que um dia chamei praia e faço truques com as minhas habilidades.
enquanto fico triste, cada vez mais triste, de uma tristeza sem sim.
eu vou morrer de tristeza.
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O que a tristeza é quando nos acontece
na minha pele. há uma dor que eu não sei. somo todas as tristezas do meu pequeno mundo e continuo sem saber. lembro-me de um país distante onde as crianças brincavam com os sonhos e dormiam ao relento numa praia de areia verde, como se fosse um tapete de campo primaveril. amanhã estarei aqui e o que eu disser será definitivo para saber o que não sei. o corpo. o sentido, os. assumo viver a tristeza por hoje. o meu corporalma queixa-se. os efeitos especiais. a vista cansada. a moínha. eu sacudo os ombros de contente. não há como voltar à terra de onde nasci.
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4 de julho de 2008
os braços no ar
penso com os braços levantados. há o vento nos dedos e nas mãos e no corpo todo.
depois vem o sol e as estrelas e o espaço sideral. só depois a infância, o arrepio,
o ir e vir constante.
a própria morte.
é com os olhos postos na sorte que eu penso. que procuro. uma palavra. e uma palavra não chega. nem uma nem mim. nem milhões. as palavras-estrelas reproduzem-se infinitivamente no pequeno céu onde me admiro do mistério do existir.
eu sei. elas não são finitas. ou seja, são-no apenas quando ao percebê-las, não as percebo e elas se mantêm ali, no firmamento pequenino e doméstico do meu pasmo.
são sempre mais umas e outras, como ondas, como ondas e estrelas, só que nunca brilham, nunca brilham verdadeiramente.
tenho os braços levantados e já deixei de pensar.
de sentir o vento, o sol, os dedos, as mãos, o corpo todo.
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