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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

7 de janeiro de 2009

É tarde, muito tarde na minha noite

Levanto-me para a minha noite,
o meu estado de vígilia.
A minha inquietude.
Na escuridão da sala a luminosidade
da pantalha do computador
parece aqueles néons das
noites duvidosas da nossa adolescência tardia,
ali ao cais do sodré,
entre marinheiros, putas e
la noveau vague,
os anos oitenta,
o jamaica,
o tokio,
o shangri-la.
A minha inquietude agora é outra e
tão diferente
que se antes soubesse a que agora me chegaria
teria recusado as
históricas manhãs em que o bafo etílico se dissipava
naquele choque,
que mundo é este lá fora?,
e porque é que esse mundo lá fora entrou todo dentro da minha cabeça de marfim?,
essa overdose de sons,
gigantes moleculares de matéria dissonante,
as manhãs,
o passar entre as vendedoras de rosmaninho, de salsa e hortelã no mercado da ribeira.
A minha inquietude agora é a minha morte cívica.
Eu sei,
eu encho o peito de heroicidade,
mera necessidade de sobrevivência,
daqui a nada quando for lavar os dentes
antes de dormir,
preciso de reconhecer no tipo que está à frente um elo
comigo mesmo,
mas depois, quando me vou deitar,
no espaço exíguo entre o corredor da sala e
a cama,
o leito,
perco a basófia,
e é por isso que me levanto para esta noite de vígila,
onde o que me sustém na escuridão é esta ideia de
que morri civicamente.
Não vale a pena tentar fazer literatura com isso.
Morri e são também mortos os que me leêm.
Escrevo para mortos, eu
que não vivo
mais do que o sussurro deste desabafo.
Talvez, que digo?, é bem provável, que a minha morte cívica,
seja a literatura rasca em que me envolvo,
devemos continuar ainda a fazer de mortos por mais algum tempo,
outros virão,
os nossos filhos,
e tal como nós fizémos,
ou pensámos que o fizémos,
com a não vida dos nossos pais,
farão de vivos,
entregar-se-ão à ilusão da vida
com a mesma autenticidade,
com a mesma generosidade,
com que nós nos entregámos,
saberão resolver de outra forma,
com juventude,
que é sempre uma forma da poesia resolver o mundo,
a dor,
o encarceramento,
a falta de provisão de humanidade no mundo em que viverão.
Eu hoje não consigo desligar-me dos rostos daquelas crianças e mulheres
que morreram na faixa de Gaza,
eu sei,
os militantes do Hamas ocultam-se entre a população civil,
o medo torna os mais valentes acossados,
os israelitas também têm de viver ali,
eu sei tudo isso,
só não sei,
e tenho tantas saudades da minha televisão a preto e branco
onde vi na minha infância a morte dos vietcongs,
é horrivel a cores aquele sangue vermelho,
tão parecido com o meu quando me corto,
quando me aleijo,
quando me dói.

1 comentário:

  1. Brutal.
    Cada texto que aqui leio, é, sem dúvida, uma mnemónica.

    Um abraço.

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