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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

29 de junho de 2006

Aquilo que vejo naquilo que olho

Apenas porque um cansaço se me atravessou os olhos e eu tive de fechá-los durante alguns momentos e depois, reabrindo-os, apanhei com a claridade toda ela junta, apenas por isso me apercebi que eu já não olho as coisas, já não as observo, não as distingo. Talvez seja como se eu tenha criado uns cookies do real e sempre que desperto estabeleça automaticamente uma conexão intuitiva que me repôe as ligações familiares ao meu dia-a-dia. É como se tivesse um simulacro de realidade diante de mim e seja através dele que eu estabeleço as pontes que me permitem conduzir-me pelos dias.

O meu problema agora é perceber porque é que eu fiz isto. Porque terei sido eu, pressuponho. Não vejo quem possa ter entrado no meu sistema de percepção e de recepção do mundo e por meio de alterações dos polos e dos fios de transmissão, tenha substituído este mundo real onde eu deveria viver por aquele onde realmente vivo. Teria de ser um trabalho altamente sofisticado e não creio que valha o investimento tecnológico necessário para essa façanha.

E se fui eu, porque é que eu fiz isto? O que ganho com isso? Por exemplo, neste momento estou diante desta magnífico Tejo e há uma imagem que há uns tempos me era habitual: um rebocador, um guindaste, um cargueiro e um pequeno barco para transbordo da carga. É uma imagem bonita. Não tão bela como o Convento de São Vicente de Fora que me ocupa uns trinta por cento do campo visual, mas sem dúvida com mais história. Com mais movimento. A grua varre o convés à procura de carga, baixa-se, recolhe a carga, iça-se de novo, e durante todo este tempo move-se. Quem estará lá? O pavilhão do barco é sueco. Há toda uma rede de conexões que me desperta a imaginação. Os marinheiros. As suas familias. A carga que transportam. A quem a vão entregar. O que declaram transportar. É um veio quase inesgotável.

Disse que há um tempo que esta imagem me era habitual. É verdade. É uma ligação de verão. É quando o estio vem que eu me detenho a olhar com mais intensidade este rio. Que redescubro o prazer de empunhar os binóculos. Ao meu lado há uma casa com telescópio. A Lisboa que se deita e se levanta com o rio tem olhos sobresselentes, prótesicos. E por ser uma ligação de verão, ao retomá-la neste olhar de veraneio que por estes dias iniciei, estranhei agora este cargueiro, esta história da carga e descarga. Voltamos ao mesmo tema. Eu tenho imagens que não me deixam ver o mundo como ele é.

Devo acompanhar um pouco mais esta ideia das imagens que construo. O que me leva automaticamente para um dos mais recorrentes trabalhos de desconstrução do real que conheço. O teatro. Ouvi durante muitos anos seguidos uma frase que produz sentido em mim: "O teatro ajuda a ver o mundo". É claro que a partir dos meus melhores anos cresci ao pé de uma incansável retórica apologética dos valores e das práticas teatrais e não é por isso estranho esta naturalidade com que escutei o confiar ao teatro uma relação de maior proximidade com o mundo onde vivo. No entanto isso não basta. O teatro é um choque, uma pancada nos olhos e nos sentidos que, se vêem inseridos num campo de tensão onde o espectador também participa, forçadamente, na experiência de simulação.

Porque é que eu construo ligações familiares com o real e essas ligações, esses links, tem esse condão de me retirar de um confronto com o real? Porque e para quê? Para que é que eu preciso desse véu?

6 comentários:

  1. Ao ler-te pensei se não estarás agora a absorver realmente, a ver realmente as coisas. Passamos a vida toda a olhar sem ver. Não estarás a ver?

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  2. Porque é que não começas a pensar em formas de te soltar desse véu, dessas ligações, dessas imagens, quando surgem? Ou relaxas?... Para que a experiência do que vês, sentes, cheiras sejas mais próxima do que é... Um porquê único que explique o fenómeno que descreves... é... útil? A pergunta claro que é... mas encontrada uma resposta, o que fazer com ela? Esse(s) véu(s) não o incentivas, não te dá prazer, não te liga a ti, às tuas memórias? Volto a perguntar: porque não mudar o foco? Porque não tentar encontrar formas de te libertares dessas imagens, do que se interpõe, quando é a experiência de algo que vês que queres[?], sem o seu valor simbólico, afectivo, sem o que é dado pela história pessoal? Porque não pôr o foco aí? Um abraço, nuno

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  3. Não encontro soluções, só parelelismos.
    E porque é que eu fiz isto? O mundo real ao alcance dum click que teima em não aparecer. Eu vivo muita vez no tal mundo paralelo, que eu construi?

    Sabes que não sei a resposta? Há coisas que nos escapam, talvez sentidos que não nos pertencem, mas sim a "outros", e que esses outros invadam a nossa vida real e a tornem numa percepção de um mundo diferente do nosso.

    Dou comigo a olhar para m quadro num canal de televisão, e a pensar como é que aquele quadro que era meu, e só pode ser meu, porque fui eu que escolhi a moldura (muito pouco vulgar), foi ali parar? Levanto-me vou ao sítio onde o quadro deveria estar e já não está.

    Mudou-se para outra casa, o quadro, e para uma novela da Tv, onde se fala em teoria da conspiração, no destino, e em coincidências. E eu, não acredito em coincidências, acredito sim, em serependity (o acaso nunca vem só)

    Há um estranho paralelismo entre a tua história e a minha, chamemos-lhe acaso

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  4. Boa tarde. Não tenho nada de absurdamente fantástico neste momento para dizer, a cabeça não deixa, o estômago não ajuda :)
    e as tuas palavras deixaram como que paralisada.

    Hei-de comentar oportunamente os posts, tendo já lido alguns.

    Ver-se aquilo que se olha não é tarefa fácil, sobretudo quando as pessoas incorrem em certo destreino dessa actividade. Para mim sempre foi um enorme prazer.

    E dizem que tenho jeito :)

    Um beijo

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  5. posso escolher aquilo que olho, mas nem sempre escolho aquilo que vejo...

    (o confronto com o real é antes de tudo a própria experiência do real... procuro "experimentá-lo" sem filtros ou ligações, sabendo que isso é uma impossibilidade absoluta...)

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  6. é difícil "entrar" completamente no real.
    há pessoas que têm mais facilidade que outras.
    os pensamentos difusos atrapalham, certamente.
    aquela sensação que se está dentro e que se sente a vida plena só consigo de quando em vez, deitado na relva fresca de barriga para baixo, cheirando e sentindo.
    bem sei que é mais físico, mas dá-me essa sensação.

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