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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

17 de agosto de 2006

Vão lá fora sentir a respiração da vida

Apago a televisão. A luz. Fico apenas com o reflexo do ecrân sobre as teclas. Aprecio a escuridão quando escrevo neste blogue. É o meu refúgio. Por estes dias preciso cada vez mais de um refúgio. Ponho a Norma de Bellini. Alguém a deixou aqui para me cultivar. Aprecio muito por estes dias as pessoas que se aproximam de mim e me deixam coisas, ou que pedem que eu lhes deixe coisas, e elas e as coisas e eu, unidos num desejo sincero de uma vida outra. Há tanta gente distraída desta importância: a procura da felicidade, a sincera procura de felicidade em nós e nos outros nos aproxima, nos torna próximos. Durante estas férias pensei longamente em escrever aqui. Desejava fazê-lo. Este não é um blogue como os outros que eu criei. É um filho único, onde tento só vir quando imbuído de uma tenaz vontade de procurar a escrita verdadeira. Desejava vir aqui, ansiava por isso. Nunca pude. Para o Reservado o Direito de Admissão não escrevo em cibercafés. Que alguma coisa seja verdadeira tana minha vida, penso sempre que aqui venho.


E também não sabia como estar aqui. Parecia-me entretenimento de pequeno burguês satisfeito consigo mesmo vir aqui escrever. Há coisas mais importantes do que procurar a escrita verdadeira, pensava. Não, não pensava. Repetia, papagueava. A escrita, a verdadeira e a falsa, sempre esperou e fez fila para uma data de urgências que gesticulam muito tentando captar a atenção que não merecem, de que não são merecedoras. Eu escritor de posts não tenho nada mais urgente do que vir aqui e desatar a sangrar. Não há nada que possa ser mais importante. Ou melhor, na minha inutilidade, não há nada que eu saiba fazer que vos possa ser mais prestável. A única coisa que realmente aprendi na minha vida, fosse num palco, como actor, ou na minha secretária solitária, foi a sangrar, a rebentar com as palavras antes de elas me rebentarem a mim. É verdade. Não que o faça bem. Sim, que o faço. Ouso fazê-lo. Dou sentido à minha vida tentanto estar aqui na escuridão da sala a alumiar-me por dentro.

Escrevo e apago. Se alguma coisa me traz para fora da sala, quando volto apago o que escrevi. Quer dizer, apago as palavras. São bosta de boi as palavras que apago. Escrita paradoxal esta: ou de sopetão, parece que incontrolável, ou intercalada de longos silêncios. O que é que é esta forma de escrever com grandes pausas entre uma palavra e a ideia que lhe sucede? Se ainda estiverem aqui estas frases de merda é porque nada me distraiu e me levou daqui para fora e trazendo-me de novo, me mostrou a miserabilidade das palavras que aqui pús. Peço-vos um favor. Leiam estas palavras como se tivessem a ler bosta de boi ou de vaca. E não é um exercício de estilo. É a mais pura verdade. Talçvez seja esta maldita guerra que não me deixa entrar na minha pele. Eu sei que houve um cessar-fogo. Não li, não vi as notícias. Espero que seja um cessar-fogo dos verdadeiros, que tenham deixado de cair bombas em Beirute, Tiro e Haifa. Podem pôr os palanques para o fogo de artíficio, a pirotecnia dos saldos, dos ganhos e das perdas. Dispenso o folclore. Basta-me saber que há mais umas tantas horas, dias em que o som da morte, os tambores da morte, não se fazem ouvir. Não é muito mas vivemos assim, do pouco que a terra, o céu, os mares e a boa vontade dos homens nos dão. E agora se calhar ainda vou ter de ouvir uns gajos a dizerem-me porque é que eu choro o Líbano e não choro Darfur. E têm tanta razão. Já consigo interiorizar a ideia de que o libanês, o palestiniano, o afegão, o iraquiano, o rabi judeu, sejam meus semelhantes, que quando morrem, morro com eles, e morro a sério, mas aquele negro, aqueles milhares, milhões de negros entregues ao seu azar, ainda não são meus iguais. Ainda não morro com as suas mortes. Não pensei neles um minuto sequer. Estão longe, muito longe, são de um outro planeta. Um lugar onde nunca fui, onde nunca irei provavelmente. Onde não sei se conseguirei ir. Tenho uma paixão romanceada por África mas não sei se conseguirei algum dia ir onde esse meu irmão morre. Talvez quando der na televisão. Quando os seus corpos amontoados, pasto das moscas e dos insectos, me vier novamente dar conta de que a minha ideia de humanidade não passa de uma caricatura da verdadeira humanidade. O que eu escrevo aqui será bosta até esse dia. Poderei entesar a sensibilidade uma meia dúzia como eu mas não deixará de ser merda, merda inodora, incolor, asséptica.


Ninguém nem nada me retirou daqui, desta cadeira onde escrevo e eu assim perdi a coragem de apagar. Desculpem o tempo que vos tomei. Não vejam nestas palavras senão a busca sincera das palavras que afinal não escrevi. Talvez porque estou preocupado. A guerra ainda não acabou, está dentro de mim. Enquanto os meus, ou aqueles a quem os meus chamam seus, continuarem a matar, a pilhar, a incendiar, não terei mais paz. E se amanhã uma bomba me rebentar com os cornos, com a minha casa, com a minha família, proíbo a estatística da carne para canhão de me tratar por civil inocente. Eu não preciso da inocência para nada. Precisaria da minha responsabilidade. E precisaria de a compartilhar convosco. Chamaria a isso uma verdadeira democracia. Chamaria uma verdadeira democracia a esse regime que me ajudasse a ver que é possível coexistirmos. Que me educasse para isso, que educasse os meus filhos para isso, que me acordasse todos os dias ao som de clarins para saltar da camarata e ir, canrolando, aprazenteirar-me com o ofício da respiração, da contemplação, da comunhão. Como esse dia está longe! Educámo-nos para o ódio. Para a vil compensação. Volto ao quartel em que nestes últimos dias tenho constituído a minha alma. Há trabalhos a fazer. Trabalhos civis. E agora vão, não percam mais tempo comigo, vão lá fora viver a vida que respira.

3 comentários:

  1. Repito-me no assombro com que escuto estas palavras, raiadas de sangue. Mais do que belas são bonitas. Até doem.

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  2. Barco parado, não faz viagem.
    AtÉ à vitória final
    Asta la vitória final y'olÉ

    PTPE by Bólice&Choninhas

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  3. ...como páginas dum diário de vidas paralelas num mesmo planeta onde nos sentimos todos da mesma forma.

    Beijos

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