É sempre de noite que aqui venho. É sempre pela mão da noite que começo o que aqui for desatanço, desarvoreio, arremedo. Tem de ser noite tanto lá fora como em mim. Ali, na janela, o luar magnífico deste Setembro quente. O espelho de água no rio. Os barcos de um lado para o outro, a vida. É noite, tem de ser noite aqui e dentro da minha ideia de mundo, aquela ideia onde vivo. E tenho de estar só. Tenho de estar só, terrivelmente só. Quando eu digo estar terrivelmente só não quero dizer a sofrer de uma solidão despudorada daquelas que trocamos por tuta e meia nos negócios esconsos de uma cidade sortida e variada. É muito para além disso esta solidão que me enlouquece, que me faz tremer de frio nesta noite insuportavelmente quente. A minha solidão é a dor de uma humanidade inteira, ou melhor, a dor que adivinho numa humanidade inteira. É eu estar aqui, a meio dos quarenta e ter perdido o fio à meada. Ando à deriva. Os meus gestos são inconsequentes. Hoje passei por um pedinte que tinha sida e virei-lhe a cara, depois comecei a chorar e logo na outra esquina, despejei toda a prata que tinha no chapéu de um contorcionista desempregado de um circo do qual já nem me lembro do nome. Amanhã, sei lá o que me vai acontecer amanhã. Vou rabujar com a puta da sociedade de mercado e depois, se calhar nem cinco minutos passados, vou atafulhar-me de milho no cinema pipoca. E sem nunca poder gritar, "Milho-Rei". Tocam os sinos e sou eu que reverbero. Sou uma caixa de ressonância malsã. Venho sentar-me aqui para me perceber e acabo por sair daqui sempre confuso, irritado, mortalmente entediado comigo, com o mundo, com a minha vida. Para eu saber a resposta tinha que saber a pergunta. E essa é que é dificil. O que é a minha verdadeira pergunta?, hei-de perguntar sem nunca saber ao certo. Penso que as ideias também envelhecem connosco. As minhas estão velhas, cansadas, começam a ter crises prolongadas de esquecimento. Ou então acordam a meio da noite e vituperam o mundo por ele as ter atraiçoado. Tenho por vezes medo desta escuridão onde me enfio para tentar aclarar a minha vida. Tenho medo do caminho que as minhas ideias estão a tomar. Elas estão conscientes de como todos os dias a generalidade da existência quotidiana do mundo caminha num outro sentido que não o das minhas ideias. Elas sabem isso muito bem, como também sabem que por mais apego que lhes tenha não me é suportável assistir de braços cruzados a esse divórcio entre elas e o mundo onde tenho de viver. Por que a verdade é esta: o mundo onde tenho de viver não é mais do que a ideia do mundo onde tenho que viver. E se as minhas ideias não me fornecerem pelo menos essa mínima correlação, terei de as abandonar, de as atirar ao lixo. Sempre que passo nos contentores coloridos do lixo que tenho mesmo à saída de casa, dou por mim a ver se encontro um novo, de uma cor inaudita, para a reciclagem de ideias. Ando a adiar mas sei que é isso que um dia vai acontecer. Não suporto mais a dor de uma ideia resistente à compreensão do mundo. Eu poderia dizer que as minhas ideias são generosas demais para o mundo onde vivemos e teria alguma razão. O mundo onde estamos não está apenas mais ingovernável. Está também mais impensável. Mais uma razão para que procuremos as ideias que nos aproximam do mundo.Em mim está para breve, para muito breve. Qualquer dia despeço as minhas ideias, dou-lhes uma indeminização, mando-as para casa. Fico só com o mundo. Talvez nessa altura consiga que ele me imponha uma determinada ideia dele mesmo. Uma ideia com a qula eu consiga conviver. Que me leve.
27 de agosto de 2006
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Compreendi_te!
ResponderEliminarMais nada!