acabo por me dar conta que não tenho muito jeito para esta espécie de dor em directo. faço muitas vezes o metabolismo da ferida, das feridas, mas faço-o tentando entrar dentro do domínio de uma expressão própria que me volte a colocar nos trilhos da ficção.
não há zapping possível. o natal torna tudo mais fácil, os pacotes de frases feitas, de sentimentos e emoções previsíveis. o natal torna tudo mais difícil. mando um sms. digo, se tudo isto não fosse uma enorme tristeza não o conseguiríamos compreender.
uma das coisas terríveis na morte inesperada, e não há nada que nos possa fazer esperar a morte de um amigo, é de que nos coloca divididos, entre o tempo que passamos com os nossos vivos e a memória que consagramos aos nossos mortos.
nem sempre se pode esperar pelo primeiro dia de novembro para chorar o desaparecimento de um amigo. às vezes é mais urgente. um sobressalto a meio da noite. um estremecer, um leve articular dos lábios, onde é que tu estás?, e depois outra vez esse silêncio cavado.
eu creio que a escrita, escrever, faz parte do jogo. não sei bem que tipo de jogo, mas ainda assim, parece-me que faz parte do jogo no sentido que clarifica. quando eu digo que clarifica não digo que torna mais claro o que está fora de mim. o que está dentro de mim há muito que perdeu o sentido.
é quase do domínio do antropológico esse dedilhar do sentido em mim. pensar que tive tantas verdades como dedos da mão dá-me uma incontrolável vontade de rir. o que a escrita clarifica sou eu, enquanto matéria e imatéria.
sinto-me rasgado por uma solidão autêntica, verdadeira. poderia ser o frio deste natal mas não. é uma solidão que, na sua crueza, dói.
eu deveria sentir-me senão feliz, pelo menos em casa. abnomino esta merda de vida que levamos e isso poderia ser o santo e a senha para mudar de vida. é que nunca ninguém consegue libertar-se desta teia modorrenta e quotidiana senão for varrido e assolado por uma crua e verdadeira amargura.
e tenho de o reconhecer. esta dor trouxe-me de volta. há muito que eu não era tão verdade. aprendi, sem dar por isso, porque tudo há minha volta o fazia, a tornar-me dissimulado. a não precisar de ser eu. passei tantas horas da minha vida metido em salas de trabalho, em associações e colectividades, trabalhando com grupos, empenhando-me naquilo que dizia ser a descoberta de cada um na expressão de si mesmo, e de repente dei nisto, um ser eticamente obeso. não vale a pena desculpar-me com o universo onde vivo. não é o melhor dos lugares mas sou eu que desmereço a ideia de mundo que me trouxe aqui.
talvez seja essa a matéria que me deva ocupar.
e nisso talvez eu volte a ser um entre os demais. a ter alguma utilidade. a servir para alguma coisa. embora, o que são estas palavras com que escrevo? o que querem dizer? servir para alguma coisa, do ponto de vista de uma vida humana, o que é? tem de haver algum tipo de crença para dar sentido a essa ideia de que uma vida pode servir para algo. ou não?
creio na comunicação, na partilha do presente, no significado que construímos ao empenharmo-nos em diminuir o sofrimento. O humano, o animal, o das plantas e de todos os seres.
é um deus frágil, este. o sofrimento é por vezes ocasião de conhecimento e sabedoria e estes, reduzem em grande parte o sofrimento. O que fazer?
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