Mais uma vez ao pensar na morte ocorreu-me que talvez vivêssemos melhor se morrêssemos mais.
Deveríamos morrer mais vezes. Não digo que devêssemos morrer todos os dias,
ou até,
em tomas certas, medicamente prescritas, de manhã, à tarde e à noite.
Digo apenas, deveríamos morrer mais vezes.
Hoje por exemplo seria a minha vez de fazer de morto.
E quando eu entrasse, invísivel na repartição,
a mulher que em mim nunca repara,que já nem levanta a cara diante do meu cadáver de todos os dias,
que só risca numa folha,que já vem com o meu nome, o meu posto e lugar de ausência,
verteria uma lágrima sincera,
como se fora o calafrio da sua própria morte que ela sentisse a entrar-lhe pelas costas,
fino recorte até à espinha, a espinal medula.
Por sua vez a minha colega do lado,
- e que por causa da proximidade está dispensada do desprezo geral que toda a repartição tem por mim,
o que aliás é recíproco,
porque nos ensinam, porque em nós medra esse livre e espontâneo desprezo que não é senão a parte que nos é possível sentir desse outro e enorme e inqualificável desprezar a que nos sentimos votados pela própria vida -
ela, a minha colega do lado e que também almoça comigo numa cozinha malcheirosa e nauseabunda por onde o sol não entra, seria a escolhida para receber as condolências.
Um a um, todos e cada um dos enemésimos funcionários desta repartição, levantar-se-íam,
lenta e dolosamente,
segundo o olhar atento do Esteves, o chefe,
deixando uma flor, um bombom, na secretária da Anabela,
assim se chama a rapariga que todos os dias me diz boa tarde quando me sento na mesa forrada a plástico já meio dissolvido no tempo,
o mesmo tempo que nos dissolve a nós,
mas mais lentamente na maioria dos casos,
e que no
fim se levanta e com o mesmo ar de tédio com que já nem
sorri,diz,
até amanhã, a mim que não sei, nunca soube, e provavelmente nunca saberei
que amanhãs serão estes sem futuro nenhum tangível.
E no dia seguinte seria outro a morrer por breves instantes.
Outro ainda a receber os bombons, as flores, as vénias curvadas e respeitosas de uma vida a fingir que é morte. Como outros seriam, sempre sobre a vigilância do mesmo Esteves, o chefe, outros seriam os que se levantariam, e se curvariam oferecendo uma lembrança, um pequeno gesto.
Não sei que mundos são estes que imagino nem porque imaginá-los me ferve a cabeça
Não sei que mundos são estes que imagino nem porque imaginá-los me ferve a cabeça
dolorida com uma morte mais uma vez,
sempre a minha.
E nem ainda morri. Nem morro. Aqui hesitante, na minha fidelidade à vida que em mim,
em cada instante, morre, no meu temor
de que seja morte o que em mim, a cada vez, vive.
Sem comentários:
Enviar um comentário