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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

1 de junho de 2006

O mundo está todo ao contrário

"pedem tanto a quem ama:pedem/o amor. Ainda pedem/ a solidão e a loucura." [1]

Vou surpreender todos aqueles que nos últimos tempos me têm apontado o pelo eriçado quando falo do amor, do meu amor: não me importo que o amor não exista.

Não me importo que o amor verdadeiro não exista. Até é melhor assim. Como não existe, como não pode existir verdadeiramente, se existisse seria falso.

E eu não sei o que poderia ser da nossa vida, da vida que levamos, se olhássemos em frente, no longe que o olhar desassombrado consegue ser, e descobríssemos que ele, o amor, não existe. Uma vida ao redor do amor já é uma vida tão árdua, tão ponderada entre a desistência e o suícidio que eu nem consigo sequer imaginar o que seria uma vida na declarada impossibilidade do amor.

Imaginem que teríamos de dizer aos nossos filhos: não esperem mais pela primavera. esqueçam o mês de maio. fodam agora, empranhem a terra com a vossa baba, retomem os ciclos, reproduzam-se, que o amor não existe. Alguns mais sinceros confessariam: vós mesmos fostes feitos de uma queca, de uma foda científica.

Porque não tenhamos quaisquer ilusões: o ciclo reprodutivo poderia começar muito mais cedo e não seria também por falta de abastança que ensinariamos os nossos filhos a retardarem-se na procriação. Se assim fosse seria um sinal exterior de riqueza o procriar na adolescência, ainda ao cair da pelugem imberbe. Ou na própria infância alta, logo que a baba se tornasse uma evidência liquida.

Não, a única razão porque ensinamos os nossos filhos a demorarem-se nos gestos, a tardarem nas carícias, a atrasarem-se na languidez, é porque sabemos que só a obstinação e a perseverança do homem e da mulher na ideia de um amor verdadeiro pode trazer a paz à terra.

"porque não haverá paz para aquele que ama./Seu ofício é incendiar povoações, roubar e matar,/ e alegrar o mundo, e aterrorizar/ e queimar os lugares reticentes deste mundo" [1]

Não é o amor verdadeiro que não existe. É a nossa vida que inexiste. Inexiste na verdade. Não tem nada a ver com o facto de pagarmos os impostos, levarmos os putos à creche, enchermos o carro do ikea, do lidl, do continente e sempre com aquele hálito vazio a travar-nos a boca, nada tem a ver com o não termos lugar no parqueamento da nossa rua, uma rua a que chamamos nossa, com o arrotarmos, com o darmos a vez ao zombi que em nós geme, sacode.

Não tem nada a ver com isso. A vida que levamos levamo-la à nossa imagem e semelhança. Pode parecer muito dificil de repente endemoinharmo-nos e dizermos que não. Ou que basta. Rasgarmos os compromissos, blindarmos a nossa vida a esse cotejar dos talvezes que ruminam os nossos dias. É, seria muito dificil. Mas não seria impossível. Ou quase tão impossível como mudarmos o tempo em nós. Somos bombas-relógio em estado de deflagração que ainda por cima, quase nunca rebentam. Ou que, como naqueles campos minados, explodem sempre tarde demais.

O amor verdadeiro não existe porque a vida que levamos é falsa. Só uma vida varrida por um vento de verdade poderia ser bafejada pela sorte de um amor verdadeiro. E digam lá, quando é que foi que a última coisa verdadeira, mas realmente verdadeira, toda a ela verdade, vos passou pelas ventas? Pelas mãos?

É por isso que insistimos no amor. A nossa insistência no amor é a demonstração matemática de que o amor existe na verdade. É na mentira que o procuramos, é certo, é na mentira que procuramos um amor que só existe na verdade.

Olho o rio ali em frente e penso, a beleza deste rio invoca a presença do meu amor aqui. Primeiro a beleza, a sua torrente, a sua força, depois o exclameio: Doiem-me os olhos de estar sempre sozinho diante deste caudal. Necessito de partilhar esta beleza contigo. Primeiro a beleza e a verdade e só depois o amor. O amor só existe na verdade e a verdade é a explanação cartesiana da beleza. Não me perguntem porquê. Custa tanto saber as coisas que não somos capazes de explicar! Parece até que o pensamento se torna físico!

Vou surpreender ainda e mais uma vez aqueles que ao correr do texto resistiram ao espanto: não preciso do amor para nada. Com o amor, com essa ideia do amor, não consigo sequer imaginar um cabelo teu. Preciso de ti.

Preciso de ti em peças separadas para amar. É diante das tuas pernas, do teu peito, do teu sexo, da humidade do território onde me esperas que eu sou capaz de recriar a ideia do amor. Ou até, todas as ideias com que um amor é capaz de fazer representar.

Dos teus olhos. Adoro foder os olhos do meu amor. Nunca fui um gajo muito macho e não tenho por isso grandes proezas sexuais a contar, pelo menos daquelas façanhas que me aterrorizaram a adolescência tardia mas tenho algo de incomum: tenho orgasmos múltiplos com o teu olhar dulcíssimo.

É por isso que eu sei que não existe o amor verdadeiro. Existes tu.

Sem ti em nenhures. O meu amor és tu.

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[1]Herberto Helder, In Poesia Toda

4 comentários:

  1. Bom. Não conhecia. Mais que bom. De engolir em seco.
    Vou ter de ler mais vezes. Sem conta. Quiça por no meu blog. Choca. Belissimo.

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  2. Lei-se, não conhecia nem o blog, nem o pequeno texto de HH.

    Obrigada pela admissão, o direito de ler isto.

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  3. Uma vez disseram-me que o mundo era óptimo antes das mulheres terem inventado o amor...

    Se não fossem as mulheres o mundo era de facto uma chatice. Sem invenção nem poesia.

    Independentemente do "amor verdadeiro" (desse se tratava) existir ou não, é bom pensar na sua possibilidade. O problema é quando a procura da sua existência, e consequente materialização numa pessoa, nos tolda a alma para ver as coisas importantes. E quando achamos que o encontramos e descobrimos que afinal não, ainda não foi desta, dá-nos para pensar que não existe.
    Principalmente quando se é uma mulher trintona com personalidade multipla

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  4. Existe a escrita verdadeira.

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