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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

2 de abril de 2006

Auto-Retrato

Se um dia a puta da morte vier mais cedo e eu me vir assim,
entre a vida que tenho na minha cabeça e a vida que realmente vivi,
provavelmente irei sentir aquele aperto na garganta, no estômago, nos tomates,
e vou ter de reconhecer que as contas me sairam erradas e que
fodi tudo,
que não passei de um cabrão de merda que desperdiçou a sua vida, uma existência que
poderia ser para um outro,
menos cabresto,
um tipo que até podia num rasgo de génio ter simplificado a vida de cada um de nós, a
minha, a tua, a nossa,
que eu não deveria ter sido tanto ou tantas vezes aqui implosão dentro dos meus cornos e deveria ter ido mais amiúde lá fora,
onde as pessoas estão, onde a vida está,
que deveria ter sido menos aquele tipo fixe que sou quando me deito e bate uma pívea com o contentamento de si mesmo,
e não é que eu esteja excessivamente eufórico comigo próprio,
o que se passa é que me eduquei sentimentalmente, afectivamente,
eticamente,
e agora não posso, nem sei, se calhar não quero,
voltar atrás,

Dói-me a cabeça com esta angústia de pensar que poderei morrer amanhã,
um minuto antes de demonstrar a incrível teoria que tenho andado a construir com persistente rigor matemático, e a que chamarei, com a extensividade que a ciência reserva à matéria teorética,
o teorema dos primeiros e dos últimos momentos de um homem e de uma mulher nesta vida,
lugar onde explico com paciente e redobrada meticula e pormenor que um gajo, uma gaja, imersos na euforia do sujeito,
da potência do ser,
da exponenciação do fazer,
começam a viver no maior distanciamento pela ética,
pelo amor,
pelos afectos,
e que só um segundo antes de saberem que vão desaparecer do número dos vivos devem voltar a encontrar-se neste estado de catárse ética, tão parecida com
a do iniciático,
mas que no morrituro já não é aquela apoteose do sujeito que se pensa a salvo de tudo,
sem perceber que é aí que está mais à mercê de tudo o mais,
é mais um
Mi cago en Dios,
aquele instante em que não se sabe se é desespero se é desassombro,
em que um, ou uma,
se treslouca,
no último rebate da consciência,
e ainda para mais,
de uma consciência as mais das vezes estuporada
no seu tédio desistente de mundo. E o problema é que ninguém, nem mesmo uma
consciência anestesiada pela sua própria dor,
pode, nos seus derradeiros momentos de actividade,
prescindir, ou desistir,
do mundo. Por isso também estar ao pé da morrença que é morrer é
estar mais perto da vida,
do viver,
se o mundo fosse composto apenas pelos nossos olhares de despedida seria incrivelmente
mais justo, mais frateno, mais igual,
mas não é,
a porra desta vida é este espaço entre o momento em que perdemos a vaidade, a ganância, a auto-piedade, a cagança,
e a extrema-unção agnóstica que um moribundo tem
quando,
alarvemente,
ou na sua alarvidade de bicho,
rebenta com o pús, com as excrescências de uma vida em estado permanente de esvaziamento.

Há uma clarividência qualquer na morte,
tem de haver,
como o climax de uma vida gasta nas apalpadelas à escuridão,
tocas-te-lhe?,
um dia tem de haver uma luz,
pode ser branca,
branca é a morte,
uma luz incandescente,
como um raio,
o último momento perceptivo,
um dia conheci um fotógrafo que tinha um projecto demoníaco,
apanhar esse último instante,
captá-lo na sua pentax,
revelá-lo na câmera escura,
fez disso toda a sua vida,
nunca conseguiu, a morte
é veloz, um minuto antes ou um minuto depois nunca é
o momento em que realmente morremos,
a sua pentax só uma vez captou a face lívida,
branca,
transparente,
de um rosto morrente,
ele nunca viu,
o seu auto-retrato,
o último.

O teorema dos primeiros e dos últimos momentos de um homem e de uma mulher nesta vida diz então que um ser humano normal,
e a primeira dificuldade começou logo por aí,
como é que se define o que é um ser humano normal?,
não se define,
ou define-se como tudo o que é humano,
paradoxalmente,
o ser humano normal é uma definição paradoxal da nossa humanidade,
não há por isso nenhuma normalidade num ser humano normal,
se a houvesse,
ele seria o ser humano ideal,
se fosse gajo por exemplo,
seria o pai, o esposo, o trabalhador, o cidadão, o crente, o eleitor ideal,
e se fosse gaja, seria a mãe, esposa, operária, cidadã, crente, votante ideais
ou os idealizados,
por todos os filhos, esposos e esposas, patrões e patroas, estados e nações,
deuses e divindades, democracias e repúblicas,
e é por isso que,
neste deleite de normalidade que acede quotidiamente ao mundo,
os filhos e as filhas que são eles também pais e mães, os esposos e as esposas,
os patrões e as patroas (que para além de definirem o que é o trabalho, o seu valor, o seu preço, também trabalham sendo por isso, dedicados trabalhadores e trabalhadoras)
os estados e as nações,
os deuses e as divindades, as democracias e as repúblicas,
tudo fazem para que já não haja ninguém normal neste mundo,
e é por isso que todos eles,
e assim, é por causa desta concertação de esforços que a minha teoria,
o meu teorema,
demora tanto a vir ao de cima,
à luz do dia,
ou da noite,
à claridade insana de um pensamento adocicado
pelos longos anos que demorou a ser
pensado,
aquele travo a madeira,
o barril,
e eu poderia mesmo nunca ter descoberto a chave do mistério, da teoria, do teorema,
a de que um ser humano normal é o que descobre a sua condição de ser humano normal e que realiza que perservá-la vale bem o projecto e a dedicação de uma vida, mesmo que exposto permanentemente à ameaça da tentação na forma tentada.

Dirão alguns que é pouco. Que não se pode consagrar a isto o principio de toda uma vida. Que há mais coisas a fazer. Empresas, negócios, acções para gerir, multiplicar.
A propriedade redistribuitiva da mediocridade.
Não é pouco. É tudo,
ou melhor, há aí nesse despojamento de um face à vaidade, à soberba, à ganância, à jactante apoteose do seu próprio espectáculo de sujeito,
tudo, uma
totalidade que irrompe,
tão sorrateira como a morte repentista. E para isso é necessário tempo. O tempo que nos falta,
que falta à nossa vida. Uma humanidade que não se revele pela sua hora paradoxal
não chega a ser, na sua condição,
humana.

Dirão que é pouco e insistirão. Tem sido isso a minha vida, ouvir como insistem,
e ainda nem eu próprio percebi o exacto sentido da palavra
despojado,
humilde,
dedicado,
simples. Ou seja, se tiver sorte já gastei metade da minha vida e ainda não compreendi senão
que a simplicidade,
a humildade,
o despojamento,
a dedicação,
são os únicos senhores que um ser humano pode servir sem abdicar da sua condição normal.

O negócio é entre cada um e o ar que ele mesmo respira.
Não há mais ninguém no mundo quando a economia decisiva do último sopro se abate sobre
o sujeito devorado pelo exercício da sua própria contabilidade analítica.
É por isso que só os cabrestos desconhecem a terrível dor da morte por asfixia a
que está sujeito,
ou a que se sujeita,
um ser humano imperfeitamente normal.

O problema está na materialização demonstrativa do teorema. O homem normal padece da mesma condição demonstrativa desta normalidade reinante. Ele precisa de fazer algo,
e quando digo algo digo por exemplo,
um objecto,
que demonstre o mundo que lhe implode com os cornos. Só que o fazer,
é a doença da vaidade.
Os fazedores,
são os gajos e as gajas que destroiem o mundo em que vivemos. Os fazedores estuporados
vivem consumindo-se na ideia que a crítica ao seu fazer é a inércia. E em certa medida
têm razão,
razão e vistas curtas,
a inércia é o fazer que o homem normal contrapôe a esse exercício jactante
de fazedura
que assalta o mundo contemporâneo.

Toda a vida que temos é razão desta vista curta que consome as nossas cidades, as nossas ruas, as casas, os nossos lares,
até os nossos amores. Quase tudo o que temos, fazemos, somos
é trampa seca emoldurada na sala.

Longo o tempo em que isto se torna clarividente na face lívida do santo que projectamos em nós e que não é mais do que
o pranto do homem normal a desabitar a sua condição de felicidade original. O processo de desfazer um fazedor é tortuoso,
difícil. Primeiro damo-nos conta da não correspondência entre aquilo que fazemos
e aquilo que projectámos fazer. Essa frustação é o primeiro momento de verdadeira
possibilidade da vida que nos foi entregue,
sabe-se lá em que esconso,
em que beco,
deixaram-na nas nossas mãos e fugiram no breu,
na escuridão,
virão ainda mais uma vez nas trevas para nos fanarem a
vida que não pedimos,
alguém no seu juízo perfeito,
pediria para viver?

Depois apercebemos-nos de que as coisas que fazemos não nos fazem. Fazemos,
refazemos,
e cada vez mais divergimos de nós mesmos. A propriedade redistribuitiva da mediocridade
tem dispositivos preparados para tornar o homem e a mulher
insensíveis à sua dor. Vamos ao shopping!, dizem,
uns e umas,
comprar é o dispositivo preferido dos homens e das mulheres
que, na sua inocência de deuses-prontos-a-montar, se venderam
a uma ideia que é,
ou seria,
se disso tivessem consciência,
a pior ideia que teriam de si mesmos.

E é tudo isso que um gajo e uma gaja tem na última golfada de ar. E é por isso que a morte é branca e cega e não deixa ver. É transparente como um formidável espelho de água. Somos nós a imagem de quando
morremos.
Só há duas maneiras de o realizarmos. Ou naquele exacto momento em que o corpo se desilude da sua forma animada,
ou numa vida que lenta, pacientemente, se desestuporou. E a tragédia,
é que no primeiro caso é demasiado tarde,
e no segundo,
pode ser demasiado cedo.

É por isso que se um dia a puta da morte vier mais cedo e eu me vir assim privado da demonstração do teorema que me agita as mãos, a ideia, o pensamento,
e porque não há glória num mártir de um teorema não provado,
nesmo que sinta e ressinta que nesse sentido não poderia ter feito de outro modo,
porque andar aí pelo mundo com a ambição dos outros, com o querer dos outros,
com os sonhos e os delirios dos outros seria uma forma de,
à partida, lixar tudo antes de tentar,
era como se nunca tivesse existido, e é por isso que se a sacana da morte entrar por aí de sopetão eu para além de tudo o que não fui,
não consegui, não soube ser vou também ter de expiar
essa desgraça de,
com a minha inércia,
ter ajudado a engrandecer a miséria do mundo que me pariu.

6 comentários:

  1. Psst... aqui estou a ler os teus longos textos. E... olha não sei... li isto «morrer é bem diferente do que se pensa e mais feliz» (Walt Whitman). Mas eu sou apenas a melancólica de serviço

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  2. Leio-te pela primeira vez, e talvez por ignorância ou falta de treino , fiquei sem saber se falas da morte com medo da vida, ou falas da vida com medo da morte.
    Não importa. Acho que compreendi o fundamental, morte e vida são uma merda! Uma que nos espera outra que não nos liberta. Acertei?
    Eu, (se te interessar) nunca tive medo da morte, desde pequena que aquele aquele buraco negro em forma de ponto de interrogação, quase me fascina pela incógnita. Já alguem disse que era pior que a vida? Ao menos sempre era uma nova experiência!
    Tens razão, a vida a que nos submetemos com regras e valores induzidos ou auto-impostos, é uma banhada. Sobrevive-se a maior parte do tempo e escapamo-nos quando sonhamos com outro filme.
    Em resumo andamos muito de nariz "apagado" e cérebro "atafulhado", não cheiramos fácilmente os nossos iguais e andamos perdidos em nós, não temos clareza mental e não descobrimos o caminho para os outros. Um beijo de vida, que te solte a mete para uma doce morte (whenever She cames)

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  3. desculpa! saiu-me! desculpa...

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  4. Fiquei sem pinga de sangue. As tuas palavras cravaram-se-me na alma, no corpo. Já nem consigo dizer-te mais nada. Se a puta da morte vier de sopetão, a vida que a leve. Duas gémeas separadas à nascença
    Não te conhecia, foi uma descoberta enorme. Só espreitava o Respirar
    Fica bem

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  5. Depois de ler os seus Contributos Para a Teoria do Filho da Puta, concluo que é o maior filho da puta de si próprio.

    uma fazedora humana imperfeitamente normal.

    p.s.-se quizer ponha-me na rua.

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