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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

2 de abril de 2006

O Vazio, depois de Lipovetski

Agitados os dias deste vazio.

Há decerto uma conferência inter-ministerial por fazer: a do anúncio formal, solene, das propriedades químicas do vazio. Por exemplo, sobre o estado agitado das moléculas em estado de esvaziamento. Lembrei-me disso ontem ao ler o desagrado de Margarida Rebelo Pinto e a edição das Couves e Alforrecas do João Pedro George,mas tinha-me recordado disso também na noite anterior quando ouvi o João Mota falar do excesso de mediocridade que grassa nas nossas vidas, e antes, um pouco antes,quando no pátio da Escola Superior de Dança assistia aos trabalhos de apresentação dos alunos e me surpreendia com esta redescoberta que não há como o corpo em movimento para trabalhar o silêncio que a linguagem verbalizada nunca poderá conseguir. Há uma violência doce no gesto compassado,entrecortado à vez pela angústia do que não pode exprimir e pela euforia deter sido discurso,o discurso, volteia lembrar-me disso quando leio sobre as comunidades de leitores na Livraria Almedina, onde gente que lê se reune em nome de um livro, de uma ideia, de um autor.E insisto neste pensamento enquanto hesito sobre discorrer umas patacoadas muito sexis sobre o meu vazio, ouolhar a sério para o de dentro deste últimos vinte anos e pensar que se não for alguma coisa neles que me motive este texto, esta escrita,não valerá a pena o tempo que aqui gasto.E o problema não é o tempo que aqui gasto. Eu gasta-lo-ei sempre pior noutro lugar, noutro tempo, noutro confronto. O pior é que esta obsessão de estar aqui nasce do pressentimento de que em nenhum outro lugar eu posso esperar dar sentido ao tempo que gasto nesta vida.Pode ser uma perspectiva um tanto romântica da existência,poderão até dizer que por desarte nas palavras tento sofrer da patologia dos grandes escritores,e que eles por serem grandes a poderiam sofrer sem despropósito,mas a verdade é que não consigo entender-me,mesmo neste não entendimento absoluto,fora deste momento em que escrevo,e é por isso que tantas vezes bendigo a internet,os blogues,os espaços ciber mundiais,porque desde criança, desde que me puseram a primeira revista da Flama nas mãos, com as histórias do clã Kennedy, de Nixon, eu teria seis anos, em Paris sem eu o saber deitavam-se os livros aos Sena,faziam-se barricadas,no Vietname o napalm alastrava num apocalipse que se imprimiu na minha memória como o primeiro sinal de quedeus poderia não existir,eu teria seis anos e meio, uma cigana tinha deixado um cachorro lá em casa a troco de cinco paus, era uma moeda branca,cinco paus vinham numa moeda branca tal e como como os vinte e cinco tostões,o cachorro fui eu que o amamentei,dava-lhe biberon, no quarto da criada, depoissalinha de estar,dava-lhe biberon e lia-lhe a Flama, o mundo português nas palmas da minha mão,era o fascismo e eu sem o saber,era criança, o meu fascismo era outro, quando a minha mãe não me deixava ver O Santocom o Roger Moore, ou O Fugitivo,talvez o primeiro grande fenómeno mediático da minha infância, o país parava,falava,em todos os lares a história daquele médico que fugia alimentava a esperança de cada um dos meus conterrâneos mafrenses, eles também poderiam fugir,é por isso que depoistamos na ficção os nossos desejos de uma vida outra, de uma vida mais ousada, corajosa, enfim,a vida, euvivia em Mafra, a modista da minha mãe, vim a saber há pouco tempo, talvez fosse a mãe da Hélia Correia, e eu sem o saber, o que eu poderia ter vivido que não vivi senão fosse esta tragédia do tempo que temos para viver não nos ser clarividente antes de o vivermos, de o percorrermos,às vezes vejo fotografias antigas e respira nelas um ar inabitante, impovoado,mesmo,improvável; eu sei. eu seique todo este jorro começou porque eu falei da minha rendição incondicional aos blogues, que mudaram o paradigma do que tinha sido a minha vida, eu que sem escrever me entreguei por completo ao sindrome dos escritores, a da ânsia de me destroçar em significados, de arrasar o templo e de nele imaginar que reconstruo a minha voz,a minha única e mais sentida voz,de tal forma que posso dizer eu, antes e depois dos blogues, da mesma forma que posso escrever sem marca de insucesso, eu antes e depois de me ter morrido o meu pai, ou de me ter nascido o meu filho, repare-se,de me ter nascido e morrido filho e pai,mesmo às duas pessoas fundadoras do que eu sou hoje, e espero que tu meu filho um dia te orgulhes de com cinco anos apenas poderes ser fundador daquilo que um homem de quarenta e três pensa, faz, ama,mesmo nessas duas pessoas eu não prescindo do pronome me, ou seja,são, e são-no apenas, enquanto me afectam.antes dos blogues eu isolava-me para escrever. E como comecei a escrever muito cedo, mesmo antes de dominar o alfabeto,imagine-se o que a escrita foi em mim como experiência de isolamento. Esta partição entre dois mundos quase nunca era respeitada e sempre a desfavor da vida,da vida fora das palavras,esse cenário virtual de uma projecção em 3 D de uma realidade ausente.Quando estava com os outros, deixava de estar com eles, para escrever. Eu tinha todas as doenças dos rapazes tímidos e introvertidos. Olhava as miúdas de soslaio, corava se diziam o meu nome em voz alta (ainda hoje estremeço se alteiam a voz em lugares públicos)bisbilhotava atrás dos buracos da fechadura, e sobretudo pensava,porque essa é a principal patologia dos garotos tímidos e metidos dentro de si próprios,que eu nunca seria tão feliz como os outros,fossem eles o meu mano joão, ou o inácio dos desenhos da mimi, ou cachucho que andava enrolado com as manas alice e bela do Quartel de Mafra.Esse é o drama de todos os que sofrem o sindrome da escrita, independentemente de serem editados, publicados ou terem o Eduardo Prado Coelho a tecer panegíricos às suas obras.Escrevem para se aproximar do mundo, para criarem uma mundividência que possa ser em si mesma uma espécie de comunidade perceptiva, que desenvolva uma sensibilidade e um percurso em comum, um livro é um primeiro passo de um trilho desenhado em comum,- anda, diz o escrevente para o seu presumido leitor,vem e deixa-te enredar por este universo que me deslumbra tanto a ti como a mim, lá fora chamar-me-ão a mim autor e a ti leitor, é um contrato, há muita gente a ganhar a vida com esta armadilha,nós não nos deixaremos ludribriar,neste momento em que me lês eu sinto o calor da tua mão, osangue que te estala nas veias,o mundo que congeminamos congeminamo-lo em conjunto,os dois, sentes a pressão arterial do meu pensamento contraa parede, o muro do teu córtex cerebral? -e no exacto momento em que as palavras são escritas dão-se conta de que há uma condição que as suporta, e essa condição é a solidão, o isolamento, a suspensão de mundo. É claro que o deus que há na linguagem compensa o génio escrevente com outras formas, torna por exemplo a realidade recriada mais verdadeira que a realidade suspendida, na medida em que a realidade que apenas o escritor viveria- e a sua família, ninguém fala nisso, a sua família também é remetida para esta realidade em suspenso,no outro dia ao percorrer a casa da Joana pensei em como era estranho que faltassem coisas do Zeca, só dei com elas quando chegámos ao escritório,até lhe perguntei,"como é que é partilhares o teu pai com tanta gente?", ela sacudiu a cabeça e disse-me para deixar as perguntas dificeis para outro dia,o que é uma forma de dizer,há coisas mais simples na vida -ao atingir o seu estado imaterial, ficcional, se multiplica. Tal como se fora pão. E multiplicando-se passam a ser realidade verdadeira para milhares de pessoas. É claro que se ninguém faz umaconferência interministerial sobre as propriedades do vazio,nomeadamente sobre o seu estado permanente de ebulição, muito menos o governo, e a imprensa em larga medida diz o que o governo, os seus sub-sistemas mandam dizer,não vão decerto abrir um precedente e convocar uma conferência de imprensapara informar sobre a multiplicação de realidades que ocorre quando um de nósse dedica a uma solidão que o esvazia de um mundo ordinário, material,e o coloca lá naquele panteão onde os deuses, se nos fizessem o favor de existir,estariam.Não voltei ao principio para fechar o texto. Não foi um ardil. Este texto não é uma artimanha. Embora provenha das minhas mãos falsas, é o mais verdadeiro que poderia fazer agora. Nasce de uma dor. Uma dor que embora anestesiada não esquece a brutalidade que a pariu.Depois dos blogues, eu nunca deixo de estar online. Ainda há pouco alguém me perguntou se eu estava no messenger. Alguma janela diria que sim. E eu estou aqui. É seguro que não estou em mais nenhum lugar. Este é um lugar divergente. Saiem daqui estradas para todos os lugares do mundo. O facto de saberes que eu estou online, mesmo que não te responda ou que te peça um momento, faz com que esteja contigo, que eu sinta a tua presença enquanto escrevo,- no outro dia queixava-me ao CBS de que num outro servidor não consegui escrever senão posts curtos,e ele expunha-me a sua teoria mágica,escrevia os seus posts offline e depois editava-os,olhei para ele com inveja,eu também gostaria de escrever offline e depois editar,e desaparecer,a verdade é que,sem a minha presença aqui a minha relação com a blogosfera inexistia -Para o mal ou para o bem isto não é um caixote com textos. Eu sei que muita gente admirável, que admiro, que admiro mais ou menos profundamente, pensa nisto como num caixote de textos. Um caixote público. Umcaixote ferido pela sua publicidade.E eu que respiro o mesmo ar de todos eles, sei que comigo não é assim. Vêm-me do teatro, talvez, este ensejo de criar comunidades, de sacrificar a elas a minha presença. Se o meu vazio não for aqui, online,em directo,sem rede,não é vazio. não é nada.

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