[Acordo para o dia e enquanto caminho pelas ruas apercebo-me de que nada é como eu o penso. As coisas são o que são independentemente da ideia que tenho delas. Não há trégua para o pensamento. Na morte de Fernando Gil que ao menos isso seja clarividente. Não é por as coisas não serem como as penso que vou deixar de as pensar. Há minha maneira os meus pensamentos também saberão ser coisas. As minhas coisas.]
Dou-me conta da fealdade das pessoas. E não são as pessoas,é este drama de sermos nósquando nos arrastamos pelos pavimentos carcomidos pela nossa tristeza alarve. Somos cheios de nós. Quanto mais nos esvaziámos de tudo o que é importante mais cheios de nós atravessamos as ruelas da nossa desaparição.E se pensas que vim aqui falar de pigmeus, das inúmeras espécies de filhos da puta, desengana-te. Se um dia me vires a escancarar a boca para falar deles,poderás dizer com toda a propriedade, erguendo o dedo indicador amestrado com o qual coças os colhões de contentamento:- Olha, ali vai mais um cabrão!E eu serei esse filhanestro que tu apontas e indicas e não terei mais nada para me acompanhar a esse autêntico enterro de mim do que um séquito de vergonha por ter cedidoa essa glória fácil e efémera do mau linguarejar. A verdade é que o reconhecimento da imbecilidade alheia não retira um centímetro àquela disponibilidade cretina com que cada nascituro vem nutrido desde que nasce. Um filho-da-puta só deixa de ser um cabresto quando resolve atacar o seu próprio embuste.Qualquer ser humano não completamente desfadado para a aprendizagem sabe que é verdade o que digo. E também, embora seja preciso mais alguma subtileza para o realizar, uma inteligência mediana adquire em meio quartel de vida que não vale a pena em nenhuma situação - seja pai, irmão, marido, mulher, amigo, que tenha sido atacado por essa doença rara entre as formigas, os aracnídeos e os percevejos, mas pandémica entre os seres humanos, a filha-da-putice - tentar recuperar um filho-da-puta.A piedade cristã é aliás uma das maiores causas de propagação desta pandemia brutal que nos rouba os dias, um a seguir ao outro. E de repente foi a vida toda, inteira, que se escapou entre os dedos. A única atitude a ter para evitar o contágio é passar ao lado. Desocupar o pensamento com a filha-da-putice que se aproxima sorrateira.Ninguém sai vivo da filha-da-putice se não for pelo único buraco de agulha que tem saída de emergência: o escalpe do filho-da-puta ele mesmo em que nos tornámos. Tudo o resto é perda de tempo. Até porque não há coisa que um filho da mãe, um canhestro tenha mais dificuldade em reconhecer do que a sua condição de proxeneta da vida boa que poderíamos ter tido se não nos tivéssemos consumido na filha-da-putice.E não é dele, é mesmo do desvairio,da doença. É assim que está determinado. O espelho do filho-da-puta é atacado por uma solidariedade brutal. Como ele sabe que o cabresto é capaz de conspirar contra a sua própria sombra, contra o seu próprio reflexo, faz como toda a gente: quando o filho-da-puta passa, assobia para o lado.É por isso que um filho-da-puta pode estar um dia a olhar-se ao espelho e em nenhum segundo verá o filho-da-puta que realmente é. Provavelmente até vai telefonar à mãe a perguntar se o viu na tv,na rádio, nas notícias,e a mãe, o pai, o irmão, o amigo, qualquer um que se lhe aproxime nãovai ter coragem para lhe dizer o filho-da-puta que ele realmente é.O problema do filho da puta é exactamente esse. Obriga-nos a um contacto tão demorado com a filha-da-putice que deixemos de perceber que se possa viver sem ela. Tornamo-nos iguais aela para, paradoxalmente,lhe ficarmos imunes.Dou-me conta da fealdade das pessoas. E não são as pessoas, é este drama de ainda termos de ser nós. Apercebo-me até de que aquilo que me permite reparar na fealdade das pessoas é essa beleza originária que cada pessoa, seja ou não um futuro cabresto, transporta. Aaventura humana é maior que a nossa ideia de humanidade. Já não me deixo driblar pelos silogismos: cada filho-da-puta pode ser uma pessoa sem que cada pessoa tenha necessariamente de se acantonar na sua condição de filho-da puta.
23 de março de 2006
Contributos para a teoria do filho-da-puta
Publicada por JPN à(s) 7:14 da tarde
Etiquetas: Pensar quando parece que chove mais
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mas quem são, ou o que são, os que não são os filhos-da-puta? sabes? ou, no que pensas, porque nunca deixas de pensar, nunca pensas nos que não são? nos que nunca são isto-ou-aquilo? quem são, então, os que não-são?
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