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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

20 de agosto de 2005

Sombra

Escavo um sepulcro dentro do meu peito. O principio da estabilidade é a instabilidade e o desta, a estabilidade. Não há outra forma de
dizer que tenho uma sombra a fazer um plano de corte no alçado daquilo a que,
com bastante inapropriedade, chamarei de alma.
Tudo o que vejo é azul. Tudo o que vejo é azul e floresce a partir do centro, do diafragma. Da voz. Apetece-me cantar.
Tenho um sepulcro dentro do meu peito e apetece-me cantar.
É tão inoportuno um como o outro. Não sei cantar. Nem já sei cantar sozinho. O que não quer dizer que tenha perdido alguma qualidade pelo caminho. Tão somente que perdi o interesse em fazer o que não sei fazer. E eu não sei,
nunca soube cantar.
Também é completamente despropositado o sepulcro que cavei no meu peito. Não preciso dele para nada, não é de mim, do que sinto agora, veio atrasado. Ou adiantado. Um sepulcro atrasado ou adiantado é como um beijo fora de horas. Falta-lhe sempre substância. Coragem, hora, premeditação, e tudo isso são as primeiras matérias-primas do peito.
Há que ser corajoso, premeditado e pontual, principalmente com o peito. Só assim ele poderá ser generoso com a vida que escolhemos.

Tenho um sepulcro escavado em mim e apetece-me cantar a força de um peito dilatatado pelo afecto. Tudo em mim é maior inclinação. Beijo o chão que piso mas em vez de me curvar, salto, toco numa núvem. Beijo o chão que piso nesta núvem que colocou uma sombra sobre o chão que piso. É maior,
é delirantemente maior o riso de um homem ou de uma mulher inclinados sobre o peito. Eu não quero crer que voltaremos um dia ao mesmo dilema,
amadureceremos também na forma como rasgamos por dentro o nosso querer, a nossa querença.

Apetece-me gritar, exaltar-me, rebentar de tranquila idade. A política, disse ele. A política, repeti. Como sempre. Era já um reflexo condicionado. Um instinto meu de discípulo. Ele era o mestre. Eu tinha sido trazido à cidade pela mão do meu pai, a minha mãe ficara no carro, para me deixarem ficar naquele colégio interno onde aprendi a ler e a escrever, a recitar de cor o nome dos rios africanos, dos caminhos de ferro, das capitais. Ele largou-me a mão e disse para absorver tudo o que pudesse que ele tinha algo para me mostrar depois. Eu absorvi como se fosse uma esponja. Tudo o que via, ouvia. Depois ía ter com ele ao restaurante Roma, na avenida principal de Mafra. Ele colocava-me um chocolate por baixo da toalha, eu não o via, cheirava-o e fazia-me perguntas. Perguntava-me sobre tudo o que tinha aprendido. Antes de levantar a toalha da mesa dizia,
muito bem, agora só falta uma coisa,
o quê?, perguntei, tinha o recitativo na ponta da línguia, não podia ter-me enganado,
não não te enganaste, esclareceu,
mas há ainda uma coisa urgente,
agora tens de esquecer tudo o que aprendeste
. Eu não percebia nada de nada. Esquecer tudo o que aprendi. Todos os dias, disse ele. Todos os dias tens de esquecer tudo o que puderes. Tens de ter a cabeça vazia.

Aprendi na escola pública, fui filho da escola pública, cresci a admirar a escola pública. Nada disso tem a ver com o sepulcro que, como cinzel esculpindo o peito, desenhou uma sombra sobrevoando a pedra em que nasci. A sombra é veloz e eu sou também rápido. Nem sempre nos apercebemos da velocidade com que elas se transportam. E é pena. Teremos tudo a aprender com as sombras, com a nossa convivência com elas. E apercebermo-nos da sua velocidade é um principio de entendimento, de conhecimento.

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