Ele - Gostava de que ao falar se tornasse claro o lugar onde estou.
Ela - Estás?
Ele - Estamos. Esqueci-me.
Ela - Viémos juntos.
Ele - Eu sei.
Ela - Pareceu-me extraordinariamente natural que viéssemos juntos.
Ele - A mim também.
Ela - Esqueceste-te de mais alguma coisa?
Ele - Creio que não.
Ela - E se te tivesses esquecido só quando desses pela falta é que reparavas. É sempre assim.
Ele - Não me esqueci de nada.
Ela - Lembras-te de tudo?
Ele - Não, claro que não.
Ela - Eu achei perfeitamente natural que viéssemos juntos.
Ele - Eu também.
Ela - A minha mãe telefonou-me.
Ele - Telefonou?
Ela - Perguntou se tu te lembravas do dia do aniversário dela.
Ele - Lembro.
Ela - A Sério?
Ele - Claro que me lembro. Dois meses antes ela começa a telefonar a perguntar se me lembro do dia em que ela faz anos.
Ela - E que também é o dia em que ela se casou.
Ele - É de família.
Ela - O que é que é de família?
Ele - Essa mania de juntar tudo, de misturar tudo.
Ela - Sempre gostaste.
Ele - Na comida gosto.
Ela - Até dizias...
Ele - ...
Ela - Lembras-te do que é que dizias?
Ele - Era importante?
Ela - O que tu dizias?
Ele - Sim.
Ela - Não.
Ele - Eu sabia.
Ela - ...
Ele - Sempre soube que não ligavas pevide ao que eu digo.
Ela - A minha mãe perguntou-me se nós vinhamos juntos.
Ele - Vimos sempre.
Ela - Foi o que eu lhe respondi.
Ele - É natural.
Ela - Foi o que eu lhe respondi. É natural, mãe. Eu e o Jorge somos casados há mais de quinze anos.
Ele - E ela?
Ela - Respondeu-me qualquer coisa inaudível.
Ele - O quê?
Ela - Já disse, não ouvi.
Ele - Não acredito. Falou do teu pai.
Ela - Falou.
Ele - Ela nunca esquece essa história.
Ela - Não sei se eu era capaz de esquecer.
Ele - Mas não gosto que eu pense que eu sou igual ao teu pai.
Ela - Ela não pensa isso. Garanto-te que não.
Ele - Como é que podes estar tão certa?
Ela - Estou, é o que interessa.
Ele - Sim, nada disso interessa.
Ela - Aquela igrejinha lá em cima faz-me lembrar aquela capela onde me beijaste a primeira vez.
Ele - Tu estavas cheia de medo.
Ela - Porque tu insistias em roubar a caixa das hóstias. E o cálice sagrado.
Ele - Sagrado? Aquilo era latão.
Ela - Benzido, sagrado.
Ele - Não é a mesma coisa.
Ela - Desde que te tornaste ateu és insuportável.
Ele - Eu sempre fui ateu.
Ela - Mas antes não eras insuportável.
Ele - Há uma coisa que nunca entenderei.
Ela - Eu também não.
Ele - Porque é que todos os domingos é a mesmíssima coisa.
Ela - Eu também não, Jorge.
Ele - Saímos de casa para irmos para a praia e acabamos sempre neste areal.
Ela - A praia é um areal imenso.
Ele - E tem mar.
Ela - Sim, já tinha reparado nisso...
Ele - Tinhas?
Ela - Sim. Falta qualquer coisa nesta praia.
Ele - Falta o mar.
Ela - Eu sei, não sou tonta Jorge.
Ele - És esquecida.
Ela - Deve ser das poucas praias que não têm mar.
Ele - Isto não é uma praia.
Ela - Como não é uma praia? À sua maneira é.
Ele - Estás doida.
Ela - É a nossa praia.
Ele - Podes dizê-lo. Ninguém teria esta ideia desmiolada de sair para a praia, de carregar com chapéu, lancheira, bronzeador, bola de praia, cadeiras, toalhas, e vir-se plantar em cima deste amontoado de saibro e areia...
Ela - Não deviam ter deixado a porta da obra aberta, uma pessoa assim engana-se.
Ele - Fomos ao engano.
Ela - Não é a primeira vez, Jorge.
Ele - Está sempre a acontecer-nos.
Ela - Estás a rir?
Ele - Estou a sorrir.
Ela - Porquê?
Ele - Porque gosto de sorrir.
Ela - Para mim?
Ele - Para ti.
Ela - Ainda bem que não trouxémos os miúdos.
Ele - Trouxémos as coisas deles.
Ela - A minha mãe perguntou-me se os trazíamos.
Ele - Trazemos sempre as coisas deles.
Ela - A minha mãe anda a irritar-me com as suas perguntas.
Ele - Não ligues. Ela sabe perfeitamente que nunca tivemos filhos.
Ela - O problema é esse.
Ele - Ela só diz isso para te irritar.
Ela - Gostas mesmo de sorrir para mim?
Ele - Gosto.
Ela - Dou-te tesão?
Ele - Vê...
Ela - Está rijo...
Ele - Endureceu...
Ela - Eras capaz de o meter agora dentro de mim?
Ele - Estamos na praia.
Ela - É a nossa praia.
Ele - Achas que ninguém aparece?
Ela - É fim de semana.
Ele - Não há casas por perto.
Ela - Não havendo casas também não há crianças.
Ele - Quando eu era criança gostava de vir brincar para as obras.
Ela - As coisas de que tu te lembras.
Ele - As coisas de que eu me esqueço, Alice.
Ela - Eu chamo-me Rosa, Jorge.
Ele - Eu sei.
Ela - Já era tempo de curares essa tua fixação pelas Alices.
Ele - As Alices da minha vida, disse-te quando te conheci.
Ela - Mas quando me conheceste não estavas assim, rijo, dentro de mim.
Ele - Estás a sentir-me?
Ela - Claro que sinto.
Ele - ...
Ela - Não sentes que eu te sinto...
Ele - Sinto.
Ela - E então?
Ele - Costumas pedir para eu te foder.
Ela - Estamos no meio da rua, Jorge.
Ele - Eu sei.
Ela - Não podemos fazer tudo da mesma maneira sempre.
Ele - Eu sei. Mas se não dizeres para te foder é natural que eu me esqueça de que estou dentro de ti.
Ela - E não fazermos tudo da mesma maneira não quer dizer que eu me esqueça.
Ele - Eu sei.
Ela - Sabes mesmo?
Ele - Sei.
Ela - Não esquecemo-nos e lembramo-nos das coisas mais incríveis.
Ele - Esquecemo-nos.
Ela - Vais ver que foi isso, esquecemo-nos.
Ele - Também sinto isso.
Ela - A minha mãe pergunta-me muitas vezes porque é que nós não temos filhos.
Ele - Ela só diz isso para te picar.
Ela - Eu sei.
Ele - Ela detesta crianças. Olha como trata as filhas da tua irmã!
Ela - Eu sei, Jorge.
Ele - E o que é que lhe respondeste?
Ela - A quê?
Ele - Quando ela te perguntou porque é que nunca tivémos filhos.
Ela - Que nos tinhamos esquecido.
Ele - Vais ver que foi isso, esquecemo-nos.
Ela - Foi, de certeza. Não vejo outra razão.
Ele - Passa-me o tabaco, por favor.
Ela - Ainda estás cá dentro.
Ele - Estou?
Ela - Nem te vieste.
Ele - Não?
Ela - Não.
Ele - Estranho, apeteceu-me fumar o cigarro na mesma.
Ela - A mim também me pareceu esquisito.
Ele - Deve ter sido a primeira vez.
Ela - Acho que foi.
Ele - Se calhar é por estarmos no meio da nossa praia.
Ela - A nossa praia privativa.
Ele - Gostas da nossa praia?
Ela - Muito. Vamos tirar uma fotografia?
Ele - Vamos.
Ela - Depois vou mostrar na Repartição.
Ele - És má...
Ela - Vão roer-se de inveja.
Ele - Há quem tenha uma vida de cão.
Ela - A Glória detesta o Verão por causa disso. Levanta-se às seis da manhã para preparar tudo. Depoius metem-se duas horas numa bicha para chegarem a uma praia onde não têm nem espaço para meter uma toalha. Mas duas horas na bicha de regresso a casa. Quendo chega está morta. É por isso que ele fica sempre com o trabalho extra de fim de semana. Ela detesta o Verão.
Ele - Tivémos sorte.
Ela - A vida sorriu-nos.
Ele - O principal é nós sermos felizes.
Ela - Eu costumo dizer isso.
Ele - À tua mãe?
Ela - A minha mãe não ía entender.
Ele - Tivemos sorte um com o outro.
Ela - Tu és o meu rechonchudinho.
Ele - E tu o meu toucinho do céu.
Ela - Fico a tremer quando tu me chamas toucinho do céu.
Ele - O meu toucinho do céu.
Ela - Tu dizes coisas tão bonitas, Jorge.
Ele - É da vida que nós levamos. Desata-me a lingua, pronto.
Ela - Eu também.
Ele - Tu também?
Ela - Sim.
Ele - Sim.
Ela - Sim.
Ele - Sim.
Ela - Sim.
Ele - Sim.
Ela - Sim, Jorge.
Ele - Sim, Alice.
Ela - Eu sou Rosa, Jorge. Sou Rosa.
20 de agosto de 2005
A voz cresce o esquecimento
Publicada por JPN à(s) 11:39 da manhã
Etiquetas: Enquanto o poema não me acontece
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ResponderEliminarDelicioso!
tenho lido, não tenho comentado, mas hoje digo-o - gosto que tenhas vindo para aqui
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