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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

16 de julho de 2005

Um novo pensamento

Abro a janela antes de começar a escrever.
É uma janela não metafórica, preciso de ar.
O ar que respiro.

Trocaria isto porquê?

Escrever com o olhar permanentemente ligado ao que está lá fora, o rio, os barcos, as cidades suburbanas do Tejo, dá-me uma grande tranqulidade. Poderia dizer também
que és tu que me apaziguas
,
não o faço. Este não é um texto amoroso. Existirás na medida de todas as coisas
que em mim existem, agora.
Há-de haver alguma possibilidade de um tipo olhar o longe que esta janela lhe permite e ao mesmo tempo dobrar-se sobre si mesmo, sózinho.
E pode ser esta.

Agrada-me a imagem de um tipo dobrado sobre a sua eloquência de canídeo.
O que eu quero dizer é que a reserva de uma pessoa é um bem inestimável. Que devemos perseguir um mundo bom, um mundo na bondade, um mundo oficialmente devotado à respiração dos vivos e que para isso haveremos de, em algum momento,
precisar de nos encontrarmos sós.
É claro que isso é dizer-te; é dizer-te de outro modo. Só porque estás aí me permito consagrar-me por inteiro a este voo de águia sobre o dorso da minha memória sitiada.
Também é porque estás aí que eu voltei a pegar na adaga e me resolvi em acto, este.
Nesse sentido um texto amoroso torna-se político e um texto político é um imenso lugar amoroso.

Tudo isso está certo, é justo no sentido que produz. Iria para ela assim, como se fora foz, através do leito manso deste rio ledo.

Há mais tempo atrás do tempo que por aí vem e esse tempo ocupar-se-á de nós.
O tempo não me interessa como efeméride, como marca geodésica, muito menos como passado. Agarro nos meus quarenta e três anos e jogo-os assim no distante que alcanço. O tempo só me interessa
porque me permite esperar, o que é dizer, exigir de mim, amar um pouco melhor o mundo todo. Não compreendo o desaparecimento, a morte,
continuo a não perceber nada disso mas jogo-me por inteiro nesta existência duplíce. Eu preciso de sentir a evidência da morte, da minha morte, da morte dos que me são mais queridos, da morte daqueles cujas vidas explicam silenciosamente, em estado de inércia, todo o tumulto interior que vive em mim quando à boca da alma o amor se me declara.


Tudo isto é literatura, sei. Ainda não cheguei a mim. Ainda não cheguei ao momento antes do eco, do ressoar, do proferir. Um segundo antes da articulação, do vocábulo, é aí que poderei encontrar-me.

É num teatro que um dia me declararei ferido de amor. Para que ela me olhe e me veja a mim mesmo trespassado pela circunstância da revelação onde nasce a comédia, o drama, os meus mais pequenos gestos ficcionais. Para que duvide, para que seja forte, tão forte e possante como o corte desta adaga que me acompanha.

É num teatro, é no velho palco mundial, é neste tablado-mundo que me encontro agora. Estou, mais uma vez, encurralado num dilema: o meu corpo continua a respirar e fá-lo com verdadeiro gáudio, como se nunca se cansasse de mais um pouco de ar. Onde o meu corpo é energia, o meu pensamento é morte silente de todas as coisas e todos os lugares. Já o disse aqui e nada se modificou entretanto: a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro e a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte. Mas entre o meu corpo e o meu pensamento existe outro sitio onde agora me instalo: o lugar da vontade, da escolha.

E mesmo na inutilidade que o meu pensamento reserva a tudo o que faço, farei, fazemos, faremos, há um sitio em mim como um planalto onde posso respirar, rir, abraçar, dar, fazer por. Esse sítio é a vontade.

Não me peçam para explicar mais isto. Poderia fazê-lo, mas seria tão estéril! Cheguei a um lugar terrível pela mão do pensamento. Tomei também consciência de que se o meu pensamento ocupasse toda a minha vida, se fosse ele que mandasse na minha vida, eu estaria definhando em mim, desistindo de viver. Não é isso que acontece. Acordo para a vida e todos os dias bendigo esta graça em que não acredito e que não necessita da minha crença para me permitir o privilégio de estar aqui, convosco.
Amo terrivelmente a vida. O amor que tenho pelas pessoas, pelos lugares é apenas uma parcela dessa enorme demonstração aritmética que é o meu amor pela vida. É um amor impensado. Tal como a vontade de rir, de sorrir, de ser em comunhão. Ou então, e eu sempre defendi isso no teatro,
é um novo lugar para o pensamento que nos falta.

Um pensamento que não pára para pensar. Que não precisa de ficar só para o fazer. Que não é representação do pensamento. É presença. É diante da presença da vida e da morte. É um segundo depois da nossa imposição nos lugares e um segundo antes do pensamento chegar a ela.

1 comentário:

  1. É uma "arma de construção massiva", o pensamento. Alegrem-se os que têm vontade de a usar. Seja por que razão for. Apoio o direito de admissão que canta reservado.

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