Tenho um problema com a memória. Não me lembro das coisas. Sou como uma caixa de guardar coisas. Meto-as todas lá para dentro. Já as tive muito arrumadinhas. Ou pelo menos, tão arrumadas como um gajo é capaz de ter as coisas que são só suas. E depois perguntam-me se me lembro de quando...e eu lembro-me, quase sempre. Mas não da mesma maneira. Há uns anos para mim lembrar-me era conviver com as coisas. Era tê-las lado a lado. Eu não precisava de me sentar a recordar nada. As coisas vinham ter comigo naturalmente. Agora pareço uma biblioteca cheia de estantes. Amores. Mortes. Tristezas fortes. Aventuras. Quando foste feliz. Depois, o dicionário das primeiras vezes. O primeiro beijo. A primeira vez que fiz amor na praia. A primeira vez que não, em Mértola. A primeira vez em que ela chorou e me agradeceu o orgasmo que dizia, lhe tinha dado. Chorei tanto eu também, assim, feito homem, homem-forte. Ao principio ainda pensei que era mentira, para me fazer feliz, depois percebi que era verdadeiro, como era possível pensei, foi. O sexo tem um corolário de primeiras vezes que me deixa embasbacado. A primeira vez que me engoliram. Eu não sabia que isso podia acontecer. Falaram-me então das potencialidades vitamínicas do esperma. A primeira vez em que entrei detrás. A primeira vez em que tive um orgasmo em seco. A primeira vez em que ela me disse aquelas alarvidades que eu aprendi nas revistas porno. A primeira vez em que eu tive medo. O sexo é um assunto estranho para mim. Nunca o hei-de tratar por tu, acho.
A memória funciona-me assim, por temas. Excepto em duas ou três coisas. Lembro-me, para sempre, do nascimento do meu filho e do dia em que o meu pai morreu. Depois há coisas que me lembro e que eu gosto de me lembrar e que eu gosto que tenha de me lembrar delas para elas virem ter comigo. Sabe-me a gosto andar pela rua e de repente sorrir, inopinadamente. Porque me lembrei do Rio Cego, aquele regato ao pé da Paz, entre a Paz e a Ada-Pera, onde eu vivia. Lembro-me de ver o Convento de Mafra em qualquer sitio de onde olhasse. Dava-me paz, ver aquele monstro de pedra, cheio de memórias, de vidas passadas. Às vezes dá-me vontade de conceder um dia inteiro para mim mesmo. De ficar no chão da sala lembrando-me. Apetece-me voltar à infância. Cresci com o mito de que só tinha sido feliz na infância. Durante toda a minha adolescência vivi na nostalgia de uma vida anterior. Fui feliz, claro, ninguém aguenta tanto tempo seguido a tristeza. Mas todas as fotos que tenho sou eu triste. A olhar para a vida que não tive. Só com o advento dos primeiros amores carnais comecei a ter fotos em que ria. Eu pensava que iria morrer cedo, muito mais cedo do que seria morrer por exemplo agora. Tinha um verdadeiro pavor a fazer dezoito anos. Imaginava que ter dezoito anos seria sair de casa dos meus pais, ir trabalhar, seguir a minha própria vida e isso apavorava-me. Eu não queria. Não queria ter vida própria, não queria seguir o meu próprio caminho, não queria ter uma casa. Tinha um pavor verdadeiramente redondo. Só deixei de ter medo de fazer dezoito anos aos dezanove. O mais engraçado é que hoje tenho uma posição radicalmente diferente em relação aos meus medos, aos meus temores, aos fantasmas com que cresci mas eles continuam comigo. Já não os invoco mas eles estão dentro de mim. Muitos dos meus estremecimentos devem-se a eles. O medo da morte por exemplo estruturou toda a minha vida. Se tentar ser um pouco mais honesto comigo mesmo tenho de assumir que comecei a fazer teatro, a escrever por causa desse medo horrível de morrer que me acompanha desde os seis, sete anos. Sou um existencialista, digo-o sem humor. Se eu hoje tivesse esse medo de morrer que me consumiu a adolescência e a juventude já me tinha suicidado, tido um ataque cardíaco, mergulhado em sonoríferos. Às vezes ainda vem aí. Abre-se uma brecha, parece um buraco negro, digo para mim mesmo, meu deus - sou um desnaturado agnóstico mas nestas alturas a primeira palavra que me aparece é essa, meu deus - isto é mesmo a solidão universal, do cosmos, a morte para mim não é o poder transformar-me em nada, é o ter a consciência dessa transformação, é o ficar a pairar milhares de anos luz à revelia de um corpo. Não me acontece sempre, nem me acontece muitas vezes. Mas acontece-me as vezes suficiente para me tranquilizar. Eu ainda sou o mesmo com que nasci. Nada me assustaria mais do que para além de todos os outros medos, ter de me confrontar também com o da esquizofrenia do ser.
Hoje, como antes, este buraco negro é tenebroso. Mais, porque antes aterrorizava-me que toda a minha existência pudesse desaparecer, assim, no nada. Agora é pior. Agora sei que tudo inexiste. Que tudo inexiste verdadeiramente. Existimos, vamos às compras, compramos foguetório, atiramos moedas ao ar, mas inexistimos no sentido em que tudo o que fizémos é pequeno demais para demonstrar que toda a existência humana não é um terrível e vazio exercício de vaidade, de sobranceria, de não compreensão das coisas, dos seres. E isso é o mais terrível que a morte pode fazer ao mundo onde vivemos. Uma lagarta no seu despojo de lagarta ama mais o universo do que uma humanidade inteira. Eu sei, soa a estranho. O problema é esse. Soa-nos a estranho. Soa-nos a estranho e é tão verdade como haver mundo para além do nosso umbigo.
Hoje já não penso na morte, em morrer, do mesmo modo. Antes tinha medo da minha morte mas tinha um medo especial da morte do mundo. Quando Kadafhi desafiou os americanos e disse que a 3ª Guerra Mundial já tinha começado, em África, mandei um batalhão de anjos motorizados - a espécie de tartarugas ninjas que me servem desde os nove anos - fuzilarem esse imbecil. Sempre que via um arauto dos dias da guerra fechava-o num quarto escuro e bastava-me voltar a ligar a luz para apagar a sua existência. Todas as guerras, de Teerão a Cabul, Bagdad, Jerusalém, Sérvia, Montenegro, Sarajevo, Caxemira, todos os lugares devastados pela morte e pela destruição, aconteceram primeiro na minha cabeça, no meu temor de serem o embrião de um mundo de cinzas últimas e definitivas que por aí vinha para todo o nosso universo. É horrível dizer-se: não sofri um milionésimo avo com a morte e a destruição em lugares como Beirute, Jonesburgo, a Etiópia, a Nigéria, o Sudão, porque, emocionalmente, não pressenti nelas o morrer do nosso mundo. Sofri um pouco do que uma dor intelectualmente expressa pode fazer mas parei aí, na razão, enquanto limiar do sofrimento.
Hoje os meus medos, os meus pânicos, os meus melhores temores, não desapareceram mas já não me afectam o dia a dia. Desde que o compreendi integralmente que um mundo que se deixa governar por imbecis não merece ser salvo, desde que compreendi que o horror do nuclear nunca será tão terrífico como o sofrimento existencial a que colocamos milhões de seres em todo o mundo e que isso é aquilo a que chamamos nossa humanidade não é mais do que uma enorme casca de banana onde tropeçam todos os nossos melhores desejos e aspirações, desde essa altura que compreendi que o monstro não está em nós. Somos nós. Um dia deixaremos o mundo para as larvas, para as lagartas, para o mundo tenebroso do sub solo e aí talvez a existência do mundo readquira alguma verdade. Gostava muito de acreditar no mundo, toda a minha vida me moldei para isso, mas nenhum medo será maior do que a lucidez de perceber que somos nós, o homem, que está a mais neste mundo.
Digo-o sem rancor. Não conheço nem tenho alguma inimizade com quem criou isto; com quem nos lançou nesta aventura à deriva. Falar mal do mundo, falar mal do que aqui fizémos não é exercício de maldizer, daquela maledicência que é tão useira e vezeira. Falo de coração aberto, de peito escancarado,
como quem se percebe no meio da beleza de um universo inteiro.
É por tanto amar o mundo que descubro a nossa inexistência sobre ele. Vejo os rios, os montes, os mistérios da natureza e da química, da física, nunca vi uma aurora boreal mas imagino que será um poema do deus em que nunca acreditarei,
vejo a harmonia que vai do mais pequeno ser vivo ao maior fenómeno de vida, a harmonia, a dança, o movimento que isso é, há só uma coisa que eu não percebo e que me intriga, quando eu tinha treze anos, quatorze, quinze, já escrevia textos sobre a miséria do mundo mas nessa altura o mundo ainda tinha redenção. Como sempre tinha tido, pelos séculos dos séculos. Os últimos vinte anos parece que foram terríveis, verdadeiramente desoladores para a esperança numa possibilidade de darmos algum sentido à nossa existência neste mundo. E o que me intriga é perceber se de facto o mundo já não tinha salvação em 75, em 76, em 77, e o que se passou é que eu nunca tinha percebido isso, ou se de facto o mundo se estragou nestes últimos anos. Não tenho resposta para isso e gostava de ter. Talvez fizesse alguma diferença. Não sei qual. Mas talvez fizesse.
Falei da beleza do mundo e ouvi-vos a ouvirem-me: é como se eu falasse que o nosso mundo é injusto, é violento, está condenado a desaparecer mas a beleza existe. E devo dizer, eu quase disse isso.
Mas não foi exactamente isso que afirmei. Falei de que desmerecemos o mundo em que vivemos. Depois fechei a boca, juntei os lábios, fiz um silêncio e tornei a falar. Como quem já fala de outra coisa. E
aí sim, falei da beleza do mundo.
Não há adversativa. Há paradoxo.
O paradoxo é aquilo que me permite saber que sou uma pessoa de um mundo humano que vai desaparecer sem glória nem engenho, tão incapaz de sobreviver como os dinossauros, e ao mesmo tempo, um ser escancarado sobre a terrível beleza do mundo.
E digo terrível porque inútil.
Não há adversativa. Há paradoxo.
É esse o lugar da arte. É por isso que há um onde para a expressão de mim, de ti. Porque falamos da ferida que em nós se abre quando percebemos perceber. É doloroso e frágil o entendimento sobre as coisas
Amanhã a doença poderá ter-me transformado no mais poderoso néscio ou imbecil. Não há adversativa.
Há paradoxo.
Falo, falo, falo, sobre esta dor que não me dói. Não é dor em mim. O que me dói, o que verdadeiramente me dói é esta naturexa paradoxal.
O que me dói única e exclusivamente, de uma forma tão autêntica que me deixa transparente,
é a beleza de todo um universo inteiro, múltiplo, fragmentado.
Não há adversativa, há paradoxo.
Eu sou a derrota moral em que me tornei, em que fiz toda a minha vida e sou também esta pulsão inaudita para a festa, para o emaravilhamento, para o sussurar poético com que todas as coisas se espantam em mim.
E quando falo da beleza do mundo não falo apenas da beleza insofismável dos calhaus, dos minerais, das plantas, dos seres inanimados e animados. Falo
também da beleza do nosso próprio mundo de gente,
de coisas.
Não há adversativa, há paradoxo.
Devemos levar esta aventura de pensar até ao fim. Ainda há pouco o Pedro teve ciúmes da Gi-Gi. Tem quatro anos, pegou na bicicleta e foi sofrer de amor para detrás de um alpendre onde ninguém o visse. Persegui no escuro ouvindo-lhe, a Gigi não quer dançar comigo,
e de repente eu vi-me nele, eu também fui assim, com menos génio, menos rancor,
tudo o que em mim é dor começou assim, num instante de inveja, de ciúme, de uma sensação de desconforto, de calimero, e agora ele,
quatro anos apenas e olhar isto é como ver o big-bang, o ponto onde tudo começou. E atenção,
quando falo da beleza do nosso mundo de gente não falo apenas da beleza do universo das crianças, é fácil falar da tranquila e serena beleza do mundo dos infantes,
mas não é isso que eu disse.
Eu falei da intensa beleza do mundo que nos habita interiormente. Ainda há pouco estávamos no terraço da festa de anos de um amigo. Pusémos os Fischer Z. E abriu-se em nós todos um rasgo, um corte longitudinal,
expostas todas as nossas marcas interiores. Há uma ineludível e amarga beleza na nossa existência quando fazemos um corte de perspectiva e percebemos a nossa humanidade resistente. Não havia outra coisa,
apenas nós. Era um prédio de subúrbio. Vidas de subúrbio. Há nos subúrbios tanta poesia como neste pátio cinematográfico de onde vos escrevo. Porque a poesia é esta arte de escancararmos o paradoxo em que viveremos sempre.
Não vale a pena abandonarmos a meio.
Não há adversativa, há paradoxo mas
há complementariedade.
O nosso mundo não é o mundo e isso não é a razão que nos ensina: é a beleza. A beleza como coisa de dentro e de fora. Agora, sentado sobre a beleza do mundo percebi uma coisa que me devolve a esperança:
o ser humano é um quase. Educarei os meus filhos, os meus filhos educarão os meus netos este poderão ainda eventualmente cuidar dos seus filhos. Não por muito mais tempo. Temos a palavra fim escrita na testa. Tal como os dinossauros.
Esta frase devolveu-me toda a minha humanidade, toda a minha esperança.
O fim do nosso mundo não será o fim do mundo em que vivemos. A cadeia da espécie trará novos seres, novos exemplares.
Virão iluminados com formas mais brilhantes de conhecimento e sensibilidade. E no fundo nós já os antevimos. É certo que temos imaginado que vêm de outros mundos. Ainda não tivemos a coragem para perceber que virão das mesmas amibas que nos trouxeram a esta aventura do amor e do conhecimento.
5 de julho de 2005
Mnemónica para me lembrar de mim
Publicada por JPN à(s) 3:14 da manhã
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bem vindo JPN.
ResponderEliminarObrigado pelos Fisher Z.
Agarro as prateleiras e construo estantes, diariamente, para empilhar a memória. Um dia [também eu julguei que morreria cedo] quando as prateleiras começarem a cair, guardarei a estante.
Bem vindo mais uma vez JPN
obrigado jos.
ResponderEliminarBravo e de pé!
ResponderEliminarLembrei-me de uma coisa do Kierkegaard lida no Citador:
"A recordação não tem apenas que ser exacta; tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer momento ou em qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada na interioridade da recordação.
Recordar não é de modo algum o mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma condição transitória. Por intermédio da memória o vivido apresenta-se à consagração da recordação." (in Lembrar ou Recordar).
Já com aquele trecho tinha ficado sentada numa das minhas estantes e esta tua "Mnemónica" teve o condão de me empurrar, de me encostar à parede, entalada pela 'inutilidade dos livros' - estou empreguiçada para desmontar a metáfora, mas conto cntg para o entenderes.
(Até este teu alpendre me serviu para vir esconder o sofrimento - passe a analogia.)
Thks, JPN
Engraçado como acabamos sempre por encontrar denominadores comuns entre os comuns infinitamente desiguais mortais. Se calhar é um indício de alguma coisa...
ResponderEliminarhttp://orapazquermorrer.blogspot.com/2005/08/canvas.html
Desculpe jpn, a curiosidade é a minha fraqueza (se calhar é da idade. ou não.) mas não consigo parar de fazer a mim mesma esta questão:
Como descobriu o meu blog?
One page blog.
ResponderEliminarChega perfeitamente, quando todo o seu conteúdo é, de certa forma, uma mnemónica para nos lembrar-mos de nós.
BRUTAL