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a experiência humana só terá sentido se algo para lá do humano vier em nossa ajuda, em nosso socorro. o nosso drama é que a única coisa que desse género ou natureza parece poder vir é a morte, a nossa própria morte.

17 de julho de 2005

As mãos que adormecem os amantes

há pouco estávamos a falar dos corpos, do tempo e do ritmo dos corpos, de quando é que começa a contagem descrescente para o entendimento,
e a irene disse que uma das coisas mais intimas que conhecia era o adormecer com, o modo como adormecemos com alguém. sorri. quando tudo era ainda um enorme discurso teórico, um dos meus fantasmas, uma das minhas representações negativas de uma relação, era a dos casais que se deitam de costas um para o outro. nos primeiros tempos isso afligia-me de uma forma pavorosa. e ou as mulheres que amei nesse tempo eram todas dóceis e delicadas ou pressentiam que eu era frágil e inseguro, o que é certo é que todas elas aceitavam que eu lhes puxasse a cabeça para a curvatura interior do meu ombro e adormecesse assim, passando-lhes a mão pelo rosto. nunca me abandonou esse gosto - quase um capricho - de com a minha mão aberta, escorrendo do pescoço até à nuca, e depois, pela face, lavar o rosto das mulheres que amo.
a primeira vez que uma mulher que amei se virou de costas para mim abriu-se-me no chão um fosso negro, escuro, uma angústia profunda. como há muito não tenho (aliás, creio que se a voltasse a ter nesse mesmo instante morreria fulminado como um raio). Tive a ventura que ela me amasse também muito e antes que tudo isso pudesse ser dor em mim, agarrou-me na mão e colou-ma ao seu sexo. Era inverno, estava quente e eu senti que começava logo ali a duvidar das minhas disposições teóricas sobre o modo de adormecerem os amantes. Desde aí tenho experimentado de tudo. Conheci uma mulher uma vez com quem só conseguia adormecer beijando-lhe os pés. Pensei que fosse uma tara mas a verdade é que ela desapareceu da minha vida antes que eu pudesse preocupar-me. Da vez seguinte não se repetiu, tinha voltado à posição tradicional. Às vezes algumas ainda começavam a adormecer naquela curvatura do ombro que tanto significara nos meus primeiros amores mas depois voltavam-se e adormeciam em si mesmas. Havia uma que nos dias em que vinha furibunda de mundo só conseguia dormir e acalmar-se se brincasse devagar com o meu sexo. Deixava-me virar de costas, em posição quase fetal, aninhava-se na curvatura do meu dorso e depois procurava-mo com a sua mão. Eu gostava tanto de a ver adormecer tranquilamente e às vezes, ainda com gestos de sonâmbula, dar-me um piparote, eu perguntava-lhe, dormes,
dormia, no dia seguinte sabiamos ambos, dormia. De outra vez tive uma amante que traia com a mulher com quem vivia na altura, e por isso, dormia sempre em sobressalto. A primeira coisa que fazia de manhã era um tenebroso jogo de verdade ou consequência de modo a averiguar com a maior exactidão se tinha falado durante a noite. O contrário nunca se passou. Embora nunca as tivesse tido, sempre trai as minhas amantes com as minhas legitimas esposas e foram várias, ao longo da vida. Não vem ao caso, falamos em dormir, e mesmo que um relacionamento longo e demorado seja um adormecimento convulso de um diante do outro,
a verdade é que todas as amantes que tive só as constitui porque me ensinaram que era o único modo valente de defender o matrimónio.
é de tudo isto que eu e a irene falámos. de como é intimo o dormir, o respirar. o sussurrar. até o ressonar. há uns tempos a porteira de um prédio onde vivi há muitos anos confidenciou-me que punha tampões nos ouvidos para não ouvir o tortuoso ressono do marido. dizia ela que uma vez chegara a pensar dormir na sala. as filhas já estavam criadas, eram umas mulherzinhas, poderiam facilmente perceber até porque o ronco arrebentava com o próprio estuque das paredes e ninguém ignorava o tremor que era adormecer ao lado daquele homem possante. mas não o fez. porque, disse-o com uma tal candura que andei um mês em estado de graça, "descobri que não posso viver longe dele. então ponho os tampões, o meu marido trouxe-os da obras, ele trabalha com um martelo pneumático, e quando a cama estremece penso que sou eu a estremecer por ele, adormeço na paz dos anjos, menino".
é de tudo isto que falámos. de como é intimo o dormir, o respirar. o sussurrar. lembro-me, quando me apercebi que o amor não era quando eu falava dele , deixei de me preocupar com as imagens, com a minha representação. às vezes, tantas vezes, bastava um pequeno toque de dedos para me reconhecer e me embalar, tal e qual como se fora um bébé.

5 comentários:

  1. Bom, acho que te vou linkar. Posso?
    Além de respirarem bem, este reservado está a cada dia que passa mais poético, mais bonito, mais... intímo. Gosto disto aqui. Posso reservar um lugarzinho?

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  2. podes, claro. ainda não trouxe o sofá nem cadeiras mas deves ter reparado nos almofadões espalhados pelo chão.

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  3. sim, é confortável, arejado, bonito, simples. Gosto.

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  4. Lançando as redes... de novo...

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